Thursday, 10 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Reacionarismo em alta resolução

ELEIÇÕES 2002

Gilson Caroni Filho (*)

Quem se dispuser a examinar os últimos movimentos da imprensa no cenário político- eleitoral terá que abrir mão da ligeireza das configurações aparentes e aprofundar a análise. Há que se ter paciência, posto que várias categorias da teoria política são solicitadas. Nada de conclusões de afogadilho, nem reflexões excessivamente etéreas. Um texto analítico pede a desconstrução do concreto figurado para ulterior reposição como constructo pensado. Tudo isso com clareza, sem textos que confundam obscurantismo com densidade analítica.

A própria questão formulada na urna eletrônica do Observatório ("A mídia pode funcionar sem a fiscalização da sociedade?", edição n? 171) tem que ser redefinida em seus termos. Afinal, onde está a mídia senão na própria sociedade? Se, tal como Gramsci, concebemos sociedade civil como designação do conjunto das instituições responsáveis pela elaboração e/ou difusão de valores simbólicos e de ideologia, compreendendo o sistema escolar, os partidos, os sindicatos e os meios de comunicação, entre tantos outros, melhor seria indagarmos se o campo jornalístico pode funcionar sem a fiscalização do resto do corpo societário no qual se inscreve como agente hegemônico. Talvez com a noção de "campo" de Pierre Bourdieu possamos dar maior clareza ao objeto de análise e sua dinâmica. Como destaca Hugues Portelli em Gramsci e o Bloco Histórico (Paz e Terra, 1977), o pensador italiano dedica grande atenção ao que ele considera como a instituição mais dinâmica da sociedade civil (a imprensa), imprescindível para sua articulação interna. Portanto, tentar apreender as estruturas midiáticas como meros registros industriais de bens simbólicos ou a partir do senso comum predominante nas redações é perda de tempo. E de neurônios. Queiramos ou não, seus movimentos só são inteligíveis à luz da formação social em que se originam e atuam. Não funcionam como meros registros objetivos do real. Na verdade, ao editá-lo o reconstroem, a partir de critérios estritamente ideológicos. O discurso noticioso, em última instância, tem como função articular a base material da sociedade (infra-estrutura) com a superestrutura onde é tecida a dominação.

Como entender o "furor investigativo" da revista Veja em sua edição 1.750, de 8 de maio? Mera reação à concorrência? Retaliação patrimonialista? Sem descartar totalmente esses dois fatores, Bernardo Kucinski, em Cartas Ácidas, de 6/5, na Agência Carta Maior, aponta para uma ação operada a partir de fratura no interior do bloco de poder. Nunca percamos de vista que quando ameaçadas, ainda que remotamente, a classe dominante e sua mídia atuam em conjunto, e as contradições internas são temporariamente neutralizadas. Sem o norte macropolítico, qualquer análise resvalará para o anedótico ou para as intriguinhas palacianas, tão a gosto dos colunistas preguiçosos e íntimos do poder.

O fato é que não vivemos uma crise hegemônica. O bloco histórico (capitalismo de inserção subalterna) permanece incólume. A crise se dá entre os interesses dos aliados governistas. Há uma recomposição do bloco de poder com desdobramentos imprevisíveis. Uma candidatura que, malgrado o uso da máquina, parece não decolar. Setores do próprio PSDB já não escondem sua insatisfação com a pífia performance do ex-ministro José Serra. Rifá-lo pode ser a solução para evitar o "risco Lula". A incerteza do cálculo é que torna a ação hesitante. Tivessem convicção do pleno êxito e já estaria em curso explicitamente a campanha por Aécio Neves ou Tasso Jereissati. Quando pressentiu o perigo para os interesses dominantes, Veja sempre demonstrou desenvoltura.

O tiro do Globo

Nunca esqueçamos seu papel de propulsora da candidatura Collor quando, em 1989, havia a ameaça concreta de uma vitória do campo oposicionista. Muito menos, o pontapé inicial para o impeachment, no momento em que a "volúpia patrimonialista" do antigo "caçador de marajás" pôs em risco os interesses dos setores que lhe davam sustentação superestrutural. Recentemente, registremos o flerte com Roseana Sarney que, cinco ou seis edições depois, a ação da Polícia Federal na empresa Lunnus transformou em ruptura litigiosa com direito a outdoor estampando em letras garrafais: "Eles pensaram que o Brasil era o Maranhão". Se são reprovados em ética, com suas reportagens editorializadas e informações truncadas, aos Civita não se pode negar nota com louvor quando a disciplina é faro político e oportunismo. Portanto, não houve nenhuma mudança súbita no modus operandi de Veja. Continua com seu reacionarismo de alta resolução gráfica.

Uma leitura rápida no mesmo exemplar que trouxe as denúncias da tentativa de achaque ao empresário Benjamin Steinbruch, pelo ex-arrecadador de campanha de Serra, Ricardo Sérgio, nos permite duas constatações. Em momento algum o processo de privatização que teria motivado a cobrança de propina é questionado. Pelo contrário, no seu editorial a revista é peremptória: "É preciso reafirmar que não existe nenhum argumento racional contra o resultado das privatizações feitas nos últimos sete anos. Elas têm relação estreita com a modernização do país." Portanto, o que há é um deslize individual num projeto, em tudo e por tudo perfeito.

A segunda observação fortalece a tese de uma ação orquestrada nos vetustos salões do bloco de poder. Tanto o ex-ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça, quanto o ministro Paulo Renato podem ser acusados de tudo, menos de ingenuidade. Sabiam o que estava em jogo quando disseram ter tomado conhecimento do episódio: a candidatura Serra. O grande erro foi o primeiro ter dito que FHC sabia de tudo e não tomou qualquer providência concreta para averiguar as denúncias. O governo como um todo se viu ameaçado. O presidente teria incorrido em crime de prevaricação, e o que fosse associado a ele estaria irremediavelmente contaminado pela suspeição.

O espectro de Lula ressurgiu ameaçador. Nesse instante, as fraturas foram imediatamente suspensas. A luz vermelha acendeu nas redações. Era o momento de mais uma operação-abafa. E o bloco de poder sabe que pode contar com seus intelectuais orgânicos, dispersos em várias editorias.

No jornal O Globo de 6/5, o colunista Ilimar Franco era preciso no diagnóstico, enquanto na primeira página a publicação voltava a dar destaque ao "risco Lula ", com bancos aconselhando o redirecionamento de investimentos para o México, por conta da liderança petista nas campanhas:


"Tiro no candidato

O estrago na imagem do governo já está feito, com a divulgação de nova denúncia envolvendo o ex-diretor do Banco do Brasil Ricardo Sérgio de Oliveira e a cobrança de propina na privatização, desta vez no processo da Vale do Rio Doce. O tiro atinge o governo e o presidente, mas quem tem mais a perder com o episódio é o candidato do PSDB à presidência da República, José Serra (SP). A intriga entre os tucanos foi retemperada com pitadas amargas do ministro Paulo Renato Souza e do ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros.

Os fatos são esses e, sem dramas, o secretário-geral da Presidência, Euclides Scalco, trata de minimizá-los. Para Scalco, o governo vai absorver mais esse desgaste, e não adotará nenhuma atitude que faça o bolo crescer. Mas outros integrantes do governo não compartilham desse otimismo e calculam o risco de desdobramentos. O presidente do PSDB, José Aníbal (SP), que se exaltou na primeira hora, ontem dizia que o momento era de decantação, de deixar as coisas esfriarem.

A oposição esfrega as mãos com o constrangimento do governo. E, sem muita convicção, começará a colher assinaturas para a criação de uma CPI destinada a investigar a participação de Ricardo Sérgio e dos fundos de pensão nas privatizações ocorridas no período em que ele foi diretor do Banco do Brasil. O líder do PT na Câmara, João Paulo Cunha (SP), reconhece que a criação da CPI depende da rebeldia do maltratado PFL.

Os pefelistas também estão satisfeitos com o embaraço que a denúncia trará para a candidatura de Serra. Avaliam que, com o governo em baixa, mais difícil ficará para ele se destacar do pelotão de candidatos que disputam o segundo lugar nas pesquisas. Mesmo que alguns, notadamente do Maranhão e da Bahia, venham a apoiar uma CPI, os líderes do partido dizem que o momento é de cautela. Dizem também que não seria o caso de apoiar uma investigação que beneficiaria a oposição. Ainda mais porque nutrem uma vaga esperança de que Serra seja substituído.

O governo entra a semana na defensiva e a oposição, batendo bumbo. Na semana anterior, o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, teve de espantar as catastróficas previsões dos analistas de bancos internacionais. Agora chegou a vez de o presidente Fernando Henrique e de seu candidato à sucessão sacudirem a bruma moral."


Se o governo entrava na defensiva, a mídia chapa-branca passaria a operar com ofensiva total. O noticiário televisivo daquela noite deu amplo destaque à convocação do selecionado brasileiro e começou a mitigar o affair Ricardo Sérgio. A possível sonegação de R$ 600 mil da prestação de contas da campanha de Serra ao Senado em 1994 era lembrada, como escândalo, apenas por Fernando Rodrigues, na Folha de S.Paulo (8/5), único jornal, do eixo Rio-São Paulo, a focalizar o assunto com destaque entre segunda e quarta. Para os demais, os holofotes estavam abertos para o pagodeiro supostamente envolvido com tráfico e a prisão de Celsinho da Vila Vintém, o traficante mais procurado do estado.

Resposta maximalista

A TV Globo se esmerou. O Jornal Nacional (7/5) anunciava com destaque que "Polícia suspeita que o MST obrigue os sem-terra a dar metade do salário ao movimento". Jornalismo investigativo é isso. Mais credibilidade impossível.

A "volta por cima" viria no noticiário do dia seguinte. Malan "cobrava" clareza aos pré- candidatos na formulação de propostas econômicas como forma de evitar avaliações negativas por parte de instituições financeiras internacionais. Por "clareza" entenda-se a continuação da política econômica do atual governo. Recomendou, ainda, a consolidação dos avanços econômicos para que o próximo candidato possa "entregar o país melhor do que recebeu". Por "entregar", entenda-se o que quiser.

Como vimos, há margem para operações dessa monta. Se as raríssimas exceções confirmam a regra do transformismo ideológico e da ação entre amigos envolvendo governo e setores da grande imprensa, talvez a resposta à questão (reformulada) do Observatório seja: o funcionamento democrático da mídia pressupõe uma mudança radical de seus atuais pressupostos e a ampliação do número de fiscais. Aumento de esfera pública não-estatal possibilitando efetiva inserção de demandas populares no que Theodore Lowi classificou como arena redistributiva: categoria de decisões cujo impacto abrange várias linhas de classe social. Seus objetos centrais são a distribuição de renda e propriedade.

È isso ou nada. Sejamos maximalistas, uma vez ao menos.

(*) Professor-titular das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio de Janeiro