Barbárie no Rio
[Programa conduzido por Sylvia Debossan Moretzsohn]
Todos nós vimos as cenas chocantes da mulher pendurada do lado de fora de um
camburão da PM, sendo arrastada pela rua.
Cláudia Silva Ferreira tinha 38 anos e quatro filhos, mas cuidava também de quatro
sobrinhos. Era servente em um hospital, morava numa favela no subúrbio carioca de
Madureira. Na manhã de domingo, saiu de casa com seis reais para comprar pão. Levou
dois tiros, quando policiais iniciaram uma operação no morro. Talvez já estivesse morta
quando foi jogada como um saco de batatas na caçamba do camburão. Foi enterrada
nesta terça-feira, num clima de forte emoção e revolta.
Moradores dizem que a polícia chegou ao morro atirando. O viúvo de Cláudia diz que
os policiais atingiram a mulher de propósito: teria sido uma execução. A polícia diz que
foi recebida a tiros e revidou. “Reagiu à injusta agressão”, como reza o manual.
É claro que importa saber o que aconteceu exatamente, e talvez esse caso seja
devidamente apurado porque ganhou repercussão internacional. Mas a pergunta
essencial é outra: por que a polícia continua a fazer “operações” em favelas, sabendo
que isso põe em risco a vida dos moradores?
Talvez porque a vida desses moradores não valha nada, a ponto de poderem ser jogados
como um saco de batatas na caçamba de um camburão.
Operações policiais em favelas costumam ser noticiadas de maneira rotineira.
Costumam produzir mortes, mas os mortos não comovem: são sempre traficantes ou
suspeitos. É o que a polícia afirma, e é essa a história que fica valendo.
Desta vez a história foi diferente porque alguém filmou a cena chocante da mulher
sendo arrastada pela rua. A câmera de segurança de uma loja também registrou a
imagem. Era um escândalo evidente, incontestável, incontornável.
A dimensão da tragédia
O jornal O Globo desta quarta-feira expõe na capa uma reprodução ampliada da carteira
de identidade de Cláudia e abre espaço para a repercussão do caso. Mas talvez seja mais
significativo acompanhar as edições do jornal Extra, que é da mesma empresa que edita
O Globo mas se dirige a um público popular.
Foi o Extra que divulgou, em seu site, o vídeo que mostra a mulher sendo arrastada
pelo carro da polícia. É muito interessante verificar como esse jornal se comportou
nos últimos dias. Foram dias conturbados, por causa das sucessivas mortes de policiais
lotados nas UPPs do Complexo do Alemão. No sábado, o Extra põe na capa as fotos
dos policiais mortos, ao lado da imagem enorme de um PM de costas, e pergunta:
“quantos mais vão ter que morrer?” No domingo, a manchete levanta a suspeita de
que traficantes estejam pagando moradores para protestar contra as UPPs: é sempre
assim, moradores de favela, quando protestam, são apenas massa de manobra dos
criminosos. Mas então, na manhã de domingo, aquela mulher é arrastada pela rua e o
jornal imediatamente se lembra do caso João Hélio.
João Hélio foi arrastado por bandidos que levaram o carro da mãe dele, num subúrbio
do Rio, em 2007. Ele estava no banco traseiro e ficou preso ao cinto de segurança, pelo
lado de fora do carro. Todos se recordam dessa história, que causou enorme comoção
pública.
João Hélio era um menino branco, lourinho, de classe média. Cláudia era preta. Muito
preta, como seu marido, seus filhos e sobrinhos. É cedo para dizer se sua história terá a
mesma repercussão.
Mas uma comparação que circulou nas redes sociais talvez dê uma dimensão ainda
maior da tragédia que vivemos. A foto de Cláudia foi publicada ao lado da de Leidson
Alves da Silva, o mais recente policial morto em ataque às UPPs. Leidson também era
preto e pobre, chegou a morar na rua quando era adolescente. Quem vê as duas imagens
assim, lado a lado, a foto de Cláudia na carteira de trabalho e a de Leidson, com cara
de menino, abraçado à mulher tão jovem, talvez perceba melhor quem são as maiores
vítimas dessa violência. É o caso de refazer a pergunta: quantos mais vão ter de morrer?