Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Do panfleto à análise, o Estadão como alvo

Ressentida com o tratamento discriminatório que o líder do mercado lhe dispensava, a Folha de S.Paulo decidiu patrocinar um livro contra O Estado de S.Paulo. O objetivo principal seria desfazer o mito que exaltava a importância da família Mesquita como o reduto do liberalismo, da independência e da democracia na imprensa brasileira.

A tarefa foi confiada a dois jovens jornalistas que se celebrizaram na apuração dos fatos por trás das lendas: Mylton Severiano Filho e Hamilton Almeida Filho. Se a fama resistisse, era por ser merecida. Mas se alguma coisa estivesse errada, Myltainho e Haf a descobririam. Não descansariam enquanto não tivessem posto as informações a teste.

O livro acabou não saindo. Três décadas depois, sem seu parceiro, morto precocemente, Myltainho resolveu atualizar o material da pesquisa original. Contou para isso com a ajuda de Palmério Dória de Vasconcelos, paraense que há quatro décadas circula entre Rio e São Paulo.

Por mera coincidência, Nascidos para Perder (Editora Insular, 279 páginas) saiu quase simultaneamente com a História da Imprensa Paulista – Jornalismo e Poder de D. Pedro I a Dilma (376 páginas), de Oscar Pilagallo, publicado pela editora Três Estrelas, de propriedade da Folha de S.Paulo.

Regime de exceção

Quando encomendou o trabalho a Myltainho e a Haf, a Folha era apenas um distante concorrente do Estadão, sem um átimo de sua influência. Agora a Folha não é apenas a líder do mercado (paulista e nacional) como a publicação periódica de maior repercussão.

Não por acaso, Pilagallo trata logo de alertar que embora a editora responsável pelo livro faça parte do Grupo Folha, se empenhou em realizar uma obra imparcial. Nela o jornal que patrocina a edição não ocupa “um espaço que lhe seja indevido, nem recebe tratamento privilegiado”. Seus 90 anos de história estão refletidos “em seus bons e maus momentos”, com seus erros e acertos. Tratamento igualmente dispensado ao Estadão, a Veja, aos “nanicos” da imprensa alternativa e a todos os veículos citados.

Não se pode dizer o mesmo do livro de Myltainho. O título espelha seu estado de ânimo: mostrar que os Mesquita, ao contrário dos personagens heroicos, predestinados à vitória, mesmo que ela venha depois de verdadeiras odisseias, “nasceram para perder”. Esse destino manifesto teria uma razão: sempre estiveram contra o povo. Sempre procuraram manipular a opinião pública para atender suas ideias – ou bem pior: interesses pessoais que se recusaram a revelar. Inconfessáveis, pois.

O eixo dessa tese está no esmiuçamento dos cinco anos (1940-1945) em que o Estadão esteve sob o controle do governo, durante o período da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas. Alegando que os Mesquita conspiravam contra o governo e que armas clandestinas foram encontradas na sede do jornal, o governo decretou a intervenção na empresa. Os Mesquita foram afastados da direção, substituídos por homens de confiança do ditador. O líder da família, Júlio Mesquita Filho, foi mandado para o exílio.

Myltainho sustenta que a operação foi uma farsa. Uma vez que não podiam continuar à frente do jornal, por tê-lo comprometido no combate a Getúlio, os Mesquita teriam participado dos entendimentos para que a empresa ficasse sob o controle do governo. Com a força da ditadura, o jornal recebeu os maiores investimentos da sua história, se modernizou como nenhum outro e faturava como nunca. Cinco anos depois, sua liderança se consolidara e os Mesquita, de volta ao comando, ficaram mais ricos do que estariam se não houvesse a gestão estatal.

Isso é verdade e nem mesmo os Mesquita a contestam. Oficialmente, se acharam no direito de excluir esse quinquênio da cronologia oficial do jornal. Foi uma iniciativa de marketing político, mas não de todo insustentável. Júlio Mesquita Filho nunca aceitou o ingresso de Getúlio no Estadão. Foi o único dos Mesquita que não vendeu suas ações e o único a se manifestar contra a intervenção, através da sua correspondência, de público e na forma legal, ao rechaçar a oferta de compra.

Talvez, se tivesse podido se manter à testa do jornal, ele o teria levado ao fim. O “doutor Julinho”, como era mais conhecido, foi muito além do que recomendava a ética profissional ou mesmo o bom senso empresarial. Por convicções pessoais, agravadas e avinagradas por sua sofrida relação de conflitos com o governo Vargas, que o mandou prender diversas vezes e o obrigou ao exílio em outras tantas, ele se transformou num conspirador inveterado.

Acostumado a pegar em armas e enfrentar combates, sujeitou seu jornal ao risco da clandestinidade, que pode ser fatal quando do outro lado está um regime de exceção com respaldo popular e militar, como o Estado Novo até meados da Segunda Guerra Mundial. Mesmo sem uma sanção política, o Estadão sofria sangria econômica causada pelo jacobinismo do seu dono, que não era puro aventureirismo burguês.

Vida e morte

A atitude do Correio da Manhã diante do regime de exceção que se seguiu ao de Getúlio (por ironia, emulado do udenismo, que ser apresentava como a contrafação democrática à tirania de Vargas), iniciado pelo golpe de Estado de abril de 1964, foi muito menos agressiva do que a do Estadão. Dona Niomar Sodré Bittencourt não pegou em armas nem pregou a deposição do governo. Nem assim o grande jornal carioca escapou à perseguição, agonia e morte que decretaram os chefes militares, aplaudidos até o dia da deposição do presidente João Goulart, o principal herdeiro de Vargas.

A interpretação de Myltainho de que os Mesquita aceitaram e estimularam o ingresso do ditador no seu jornal extrapola a base factual. O governo, dentre outras armas, dispunha de uma tanto mais letal porque inodora: o controle das cotas e das tarifas alfandegárias de importação de papel. Sobretudo nessa época de guerra, bastaria reduzir as cotas ou tornar incerto o fornecimento de papel para levar uma empresa jornalística à breca.

Claro, os Mesquita sabiam muito bem disso. Sua capacidade de se opor à vontade do governo era pequena. Ainda assim, ao contrário do que fizeram quase todos os “capitães da imprensa” nessa época, o “doutor Julinho” se opôs à transação e resistiu a ela até receber o jornal de volta.

Myltainho devia ter lido Cartas de exílio, a troca de correspondência entre Marina e Júlio de Mesquita Filho (375 páginas), publicado em 2006, sob a inspiração do Estadão.No exílio em Buenos Aires, Julinho acompanha as tratativas entre o governo e a família através da altiva esposa, que é clara e categórica. É assim sua classificação do negócio: “O governo fica com o jornal sob o disfarce de um grupo particular. Tudo será feito com documentos que provarão mais tarde que nós não tínhamos outra atitude a tomar. Ou vendemos ou eles nos deixam indefinidamente nesta situação, que é insustentável”. Das duas soluções, o marido considera “a preferida até o último instante a que nos conservaria a posse do Estado”.

Consumado o negócio, Marina diz que Julinho “não pode imaginar o desespero em que fico com a sua revolta contra a venda do Estado”. Pede-lhe compreensão por estarem sendo “coagidos a isso”, colocados contra a parede “por um governo de força. Ou nós vendemos ou tudo será arrebentado com consequências desastrosas para o nosso nome”.

Realista (mas também enfrentando dificuldades financeiras, conforme relata), Marina observa: “Com esse governo, mesmo que o jornal fosse devolvido, seria impossível conosco dada a situação do papel – os impostos novos criados – e a limitação de páginas que vai ser imposta daqui por diante”.

Não se pode considerar como mero ardil a mudança de comando num jornal que foi invadido duas vezes pela polícia, na volta exibindo como troféu duas metralhadoras encontradas no forro da sede do Estadão, “certamente plantadas na primeira invasão”, observa Pilagallo, com mais realismo.

Um fato relevante que Myltainho não aborda é por que Getúlio criou uma operação especial para passar a controlar o Estadão enquanto, na relação com outros veículos, optou por abrir-lhes as burras do tesouro (como fez à Gazeta, de Cásper Líbero) ou arengar ameaças contra eles, logo conseguindo sua adesão incondicional. E não só para absorver empresas, mas também intelectuais, incluindo muitos nomes sagrados da esquerda, atraídos a colaborar (por boa remuneração) com as publicações do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) de Lourival Fontes, um Goebbels mais intelectualizado e sincero.

São Paulo era um mistério para o trabalhismo de Vargas. O presidente, como ditador, e, depois, como político democrático, conseguia votações cada vez maiores, mas era caso isolado. Não formava opinião pública, por ter contra si os formadores profissionais, elitistas, arrogantes e autocratas, como os Mesquita. Ao assumir o controle do Estadão, Getúlio provavelmente planejava expandir o grande jornal para si, tomando-lhe o mando pessoalmente quando esse momento surgisse. Quando, voluntariamente, pulasse do poder institucional para o poder privado.

Getúlio queria ser dono de um grande jornal (“o governo declarou que o único jornal nacional do Brasil é O Estado e tem por isso de pertencer ao país”, Marina informou ao marido). Por isso escolheu a dedo as pessoas que enviou para gerir a área comercial e financeira do Estadão, “tanto que foram mantidos lá por meu tio, Francisco Mesquita, que era diretor de administração do jornal”, admitiu o sobrinho, Ruy Mesquita, o único e o último da família que ainda trabalha no Estado.

Esse momento acabou não surgindo porque antes os militares, que o haviam ajudado a subir ao poder político, dele o despejaram, quando já não mais lhes interessava. Nesse momento, Getúlio viu as elites pelas costas. E viu que, se dependesse delas, nunca mais voltaria ao posto anterior. Foi então que decidiu radicalizar sua política de massa.

Deixou os Mesquita de lado. Estimulou Samuel Wainer a fazer a Última Hora paulista, na esperança de abrir uma cunha na maciça ofensiva da imprensa paulista. E se aliou a um populista típico, Adhemar de Barros. Sem disfarces ou sutilezas. Numa guerra de vida e morte. Seu grande lance, o maior da sua vida, foi transformar a morte em vitória, que perduraria por mais 10 anos, até que um confronto maior pusesse fim a essa etapa da história brasileira. Mas essa já é outra história.

Remédio amargo

Passadas sete décadas, ainda é difícil contá-la. O tom panfletário, de defesa de uma causa predeterminada, que antecedeu a própria apuração dos fatos, e de certa forma a viciou, empobrece a abordagem de Myltainho. O texto é muito bom, as histórias são saborosas, há bastante informação no livro, mas ele exibe as limitações do jornalismo, que chega a um ponto a partir do qual só com a ajuda de uma investigação mais rigorosa, com método atestado de apuração, é capaz de ultrapassar.

Um bom jornalista vai aos locais de referência da sua narrativa, ouve personagens, observa situações, formula ideias, mas pode lhe faltar a visão do contexto ou o domínio do processo histórico do tema de que está tratando. Mesmo com sua determinação de ir ver tudo com os próprios olhos, ser cético diante do que vê, o tempo pode ser desgraçadamente curto ou sua intuição, por seu próprio brilho, ficar à superfície de fenômenos mais profundos e complexos, ofuscando a visão com o fogo fátuo. Das aparências luminosas.

Não há dúvida que os Mesquitas contrariaram e negaram inúmeras vezes, em sua prática, as ideias liberais e democráticas que pregaram em seus jornais. Também é verdade que, dizendo-se porta-vozes da sociedade, usaram esse estandarte para tirar proveito pessoal de suas teses, algumas das quais apenas vieram em socorro dos seus interesses. Ainda assim, essa face de monstro conviveu com a face de médico, para usar a alegoria literária. E não foram poucas vezes em que patrocinaram um jornalismo de ideais e de bons propósitos.

Não foi o Estadão que enviou Euclides da Cunha como autêntico correspondente de guerra a Canudos, dando-lhe a oportunidade de atingir a altura do grande épico com Os Sertões? A qualidade do enviado especial garantiu a perenidade do material que produziu em pleno calor da hora e ao mesmo tempo foi um sucesso de vendas, quase dobrando a circulação do jornal. A partir de então, O Estado de S.Paulo teve enviados especiais de nível internacional, como nenhum outro jornal nacional, além de bons correspondentes espalhados pelo país e o mundo.

Quando poucos defendiam o voto secreto, na República Velha (que foi até 1930), oEstado era a favor também do voto feminino. Não era pouca coisa. No pós-guerra, os fornidos e numerosos cadernos de anúncios classificados tinham por capa extensos artigos dos maiores nomes do jornalismo e da intelectualidade.

Recorreu a socialistas para lançar o melhor de todos os suplementos literários da imprensa brasileira; melhor ainda hoje. E quando a era do conspirador e jacobino Júlio de Mesquita Filho acabou, seu filho, Júlio Neto, arrematou a profissionalização do jornal em plena ditadura.

O projeto podia ter tido melhor desempenho se os Mesquita não se tivessem deixado seduzir pelos erros que apontavam no governo militar, mas não foram capazes de evitar em sua própria rotina: acometidos pela megalomania tecnocrata dos engenheiros, embarcaram numa nau sem rumo certo.

Foram sofrendo perdas sucessivas em mares encapelados até que, endividados e sem a credibilidade original, saíram à francesa de um império jornalístico que era a expressão dos seus muitos erros e muitos acertos. Mas tinha a identidade e os objetivos que hoje lhe faltam, embora tenham uma saúde econômico-financeira bem melhor do que um pouco antes. Talvez tenha sido o remédio amargo para uma doença que não tem cura quando o jornal se torna apenas numa mercadoria sem fidelidade ao que é – ou devia ser. É aí que começa a agonia, que pode ser longa e ter momentos de euforia, mas terá um destino certo: a morte.

 

>> NOTA: O jornalista Palmério Dória, um dos autores de Nascidos para Perder, esclarece que o livro foi encomendado pela Editora Abril e não pela Folha de S.Paulo aos jornalistas Mylton Severiano Filho e Hamilton Almeida Filho, três décadas atrás.

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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)