Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Educação, jornalismo, publicidade: não se fracassa sozinho

 

imagem para artigo OPoderíamos chamar de infeliz o anúncio publicitário que ocupou a página 5 do jornal O Globo de domingo (7/12), que procurava promover políticas educacionais da prefeitura do Rio de Janeiro. Mas não, infelizes somos nós que já passamos, há tempos, da categoria de leitores para a de consumidores e agora para a categoria de mercadorias, conforme ensinou Carlos Castilho, neste mesmo Observatório,quando escreveu sobre a publicidade nativa (ver “Publicidade que parece notícia”). Além de já termos sido coisificados (e olha que nem sou marxista; aliás, precisa ser um para perceber isso?), agora testemunhamos de maneira explícita a concepção que administrações públicas como a do Rio de Janeiro têm sobre o que é educar um povo. Produção em série de pessoas supostamente habilitadas a desenvolver determinadas (e muito bem determinadas!) tarefas. Homogeneização das habilidades; nem sei se podemos falar neste caso em homogeneização do pensamento, pois não dá para confiar que um órgão que promova sua contribuição à educação com anúncios como o acima destacado esteja estimulando algum pensamento em seus produtos, digo, crianças.

O espantoso desse anúncio não é a revelação do óbvio, pois sabemos que temos alguma herança da ditadura militar (e até de antes) no nosso processo educacional, o que justifica a não prioridade ao estímulo do senso crítico e das heterogeneidades. O que de fato chama a atenção é a maneira explícita e sem pudor com que administração pública e jornalismo/publicidade expõem essas concepções estanques de educação sem levar em conta que o leitor possa se incomodar em ser tratado e ver seus filhos tratados como mercadorias. E se o fazem dessa maneira é porque estão certos de que não haverá reação. E se não há reação, provavelmente isso se deve ao fato desse projeto homogeneizador do pensamento já ter dado certo.

Na última década e meia, vimos no Brasil um aumento significativo de escolas de formação técnica e isso é de extrema importância num país que se estrutura especializando sua mão de obra e que tenta suprir demandas de empregos. A ampliação de aberturas de escolas técnicas não está em questionamento; aliás, deve continuar. Mas o que merece ser posto em questão é que o sistema educacional atende diferentes demandas e dá origem a algo muito maior do que especializar mão de obra. Um dado setor da educação ser destinado a essa especialização é primordial. Porém, fazer da especialização o tônica da educação em geral só depõe contra um país que tenta se fortalecer como nação.

Perfis cada vez mais empreendedores

Trocando em miúdos: escola técnica é uma coisa, ensino fundamental e médio é outra e ensino superior é uma terceira coisa. O ensino técnico se prestar a especializar mão de obra e gerar emprego. Está ok, e deve ser aplaudido. Porém, os ensinos fundamental e médio precisariam formar, antes de qualquer coisa, pessoas; e pessoas são diferentes, não podem ser coisificadas nem no pensamento nem no comportamento. A intolerância às diferenças que temos testemunhado nos últimos meses é fruto, entre outras coisas, dessa ideia equivocada de que as pessoas são iguais; e se não são, precisam se tornar.

Por seu turno, o ensino superior, para além da formação em alguma área específica, precisa estimular senso crítico, capacidade de escolhas em momentos imprevistos, desconstrução de preconceitos, habilidade em criação e transformação de coisas e situações (e isso também já estaria entre as funções do ensino fundamental e médio). Entretanto, que fique claro, estabelecer essas diferentes diretrizes não significa, em hipótese alguma, sugerir que no ensino técnico tudo isso também não esteja implicado. Não, essas coisas não são acionadas por botões. Mas o que se deve registrar é que cada campo de ação educacional se caracteriza por predominâncias de objetivos.

Num país que sofreu até ontem com o fantasma do desemprego (não se pode negar que os índices hoje são menos assustadores), fica fácil introjetar na mente da população que o que importa é especializar. Por isso, talvez o anúncio da prefeitura do Rio, que faz lembrar o clipe do Pink Floyd ou o filme do Charles Chaplin, não gere incômodo. Mas, se queremos efetivamente elaborar saídas pelo viés da educação, temos que resistir a essas concepções que invadem todos os campos de ação da educação.

As próprias diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Educação para alguns cursos de graduação, por exemplo, já são sintomas dessa invasão da mão de obra especializada em setores onde o senso crítico deveria estar sendo estimulado; vejam-se as diretrizes às quais o próprio curso de Jornalismo está sendo submetido, segundo última portaria do MEC. As ciências humanas perdem cada vez mais força dentro de cursos que formam jornalistas, publicitários e demais áreas, que ganham cada vez mais perfis empreendedores. Ou seja, a equação se fecha. Por isso, cada vez menos nos incomodaremos com anúncios que esfregam em nossas caras o projeto ao qual não reagimos.

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Cristiano de Sales é professor de Comunicação Social