Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A Crimeia e o realismo na literatura

A primeira vez que ouvi falar da Crimeia foi uma referência no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. O protagonista Bentinho trocava correspondência com Manduca, um jovem portador de hanseníase sobre a guerra que envolvia potências europeias nos tempos da expansão colonial. A doença deixava Manduca trancado em casa e as únicas distrações eram a leitura dos jornais e o debate por escrito com aquele conhecido de rua. Vale lembrar que no século 19 e na primeira metade do século 20 a imprensa tupiniquim considerava de bom tom destacar os fatos que vinham d’além-mar. O Brasil virava as costas para o interior e mirava no outro lado do Atlântico, acima da linha do Equador.

Na descrição de Machado, no capítulo “A polêmica”…

“Manduca vivia no interior da casa, deitado na cama, lendo por desfastio. Ao domingo, sobre a tarde, o pai enfiava-lhe uma camisola escura, e trazia-o para o fundo da loja, donde ele espiava um palmo da rua e a gente que passava. Era todo o seu recreio. Foi ali que o vi uma vez, e não fiquei pouco espantado; a doença ia-lhe comendo parte das carnes, os dedos queriam apertar-se; o aspecto não atraía decerto. Tinha eu de treze para quatorze anos. Da segunda vez que o vi ali, como falássemos da guerra da Criméia, que então ardia e andava nos jornais, Manduca disse que os aliados haviam de vencer, e eu respondi que não.” (Obra completa de Machado de Assis, Romance, vol 1, Nova Aguilar, 1979)

A Guerra da Crimeia, de 1853 a 1856, reuniu de um lado as tropas russas, lideradas pelo czar Nicolau I, e do outro uma aliança digna daquela que vimos na guerra do Iraque: Reino Unido, França, Reino da Sardenha e o Império Otomano. Sob o pretexto de preservar as terras sagradas dos cristãos, os russos queriam alcançar Istambul, na época Constantinopla, a cidade repartida entre os continentes europeu e asiático. Bentinho, o Dom Casmurro, acreditava que os russos tinham razão. Manduca apegava-se aos turcos.

Territórios multiétnicos

Novamente o bruxo do Cosme Velho:

“Fui sempre um tanto moscovita nas minhas idéias. Defendi o direito da Rússia, Manduca fez o mesmo ao dos aliados, e o terceiro domingo em que entrei na loja tocamos outra vez no assunto.”

Além da curiosidade de reconhecer a preocupação jornalística de Machado de Assis ao incorporar conflitos internacionais no romance publicado em 1899 – logo ele que nunca saiu do país –, a Guerra da Crimeia serve para mostrar que, mesmo sem se repetir – como apregoa Marx – a História costuma dar voltas e parar no mesmo lugar, seja como farsa ou tragédia, principalmente em pontos estratégicos para o comércio e a soberania das grandes potências. Neste momento entra e cena a diplomacia, acompanhada por sua fiel escudeira, a agência de notícias, habituada a lançar um olhar etnocêntrico sobre conflitos internacionais.

A predição do jovem Manduca na correspondência com Bentinho era taxativa. “Os russos não hão de entrar em Constantinopla!”

O narrador acrescenta:

“Li-a e meti-me a refutá-la. Não me recorda um só dos argumentos que empreguei, nem talvez interesse conhecê-los, agora que o século está a expirar; mas a idéia que me ficou deles é que eram irrespondíveis.”

O desfecho da guerra mostrou que Manduca tinha razão, embora a doença o tenha levado antes do fim do conflito. De fato, os russos não entraram em Constantinopla e ainda perderam momentaneamente Sebastopol – mais tarde recuperada – e áreas de interesse como a Moldávia, depois uma república soviética, hoje independente, mas sob a esfera de influência de Moscou.

Mas numa região como os Balcãs e a península junto ao Mar Negro, os conflitos e mudanças de mão de territórios multiétnicos desaconselham predições eternas, como as do jovem Manduca.

Jogo de poder

Com a palavra Machado de Assis.

“Não entraram, efetivamente, nem então, nem depois, nem até agora. Mas a predição será eterna? Não chegarão a entrar algum dia? Problema difícil. O próprio Manduca, para entrar na sepultura, gastou três anos de dissolução, tão certo é que a natureza, como a história, não se faz brincando. A vida dele resistiu como a Turquia; se afinal cedeu foi porque lhe faltou uma aliança como a anglo-francesa, não se podendo considerar tal o simples acordo da medicina e da farmácia. Morreu afinal, como os Estados morrem; no nosso caso particular, a questão é saber, não se a Turquia morrerá, porque a morte não poupa a ninguém, mas se os russos entrarão algum dia em Constantinopla; essa era a questão para o meu vizinho leproso, debaixo da triste, rota e infecta colcha de retalhos.”

História, política e literatura caminham de mãos dadas. Jornalistas que leem livros talvez aprendam a interpretar melhor os conflitos internacionais se olharem um pouco mais para o passado e menos para as agências de notícias financiadas pelas grandes potências. Os interesses políticos em jogo, o comércio de grãos, principalmente o trigo produzido na Ucrânia Oriental e exportado para a Rússia, o gasoduto que atravessa o território ucraniano e aquece a população no rigoroso inverno europeu, a minoria tártara e a predominância russa entre a população de 1,9 milhão de habitantes da Crimeia, região que até 1954 pertencia à Federação Russa e foi cedida pelo então primeiro-ministro da União Soviética Nikita Kruschev à república associada da Ucrânia. Todos estes componentes são fundamentais para entender o jogo de poder que está em cena, jogo este muito mais dissimulado que os olhos de Capitu. 

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João Batista de Abreu é jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense