Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Encruzilhadas da ética em tempos de ‘nova mídia’

Esta é a versão ligeiramente ampliada da comunicação que apresentei no 7º Congresso da SBPJor, em São Paulo, em novembro de 2009. Sou muito grata ao jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, então ombudsman da Folha de S.Paulo, pelo intenso diálogo em torno do tema, que contribuiu significativamente para a elaboração deste texto, e pelas sugestões de artigos jornalísticos aqui utilizados.

A abertura das possibilidades de transmissão instantânea de informações ao alcance – em tese – de qualquer pessoa já foi louvada como o ‘fim do jornalismo’, ou pelo menos ‘o fim do jornalismo tal como o conhecemos’; mais que isso, seria o marco de uma nova era democrática, ou, ainda além, de uma nova era de realização da utopia da plena liberdade, em que ‘todos’ podem ‘comunicar’ e comunicar-se pelo mundo afora, sem constrangimentos de qualquer espécie.

Não é difícil perceber que a utopia da plena liberdade continua a ser isso mesmo: uma utopia, que a famosa Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos ajuda a alimentar, por mais que a Suprema Corte americana venha estabelecendo reiteradas restrições ao free speech, como já demonstrou o jurista José Paulo Cavalcanti Filho (2005). No entanto, esses tempos de ‘convergência midiática’ facilitam a disseminação de ilusões, que o trabalho teórico está obrigado a desfazer.

Este artigo procura identificar o contexto em que floresce o elogio da ‘nova mídia’ para explicitar os novos problemas éticos que se apresentam, na medida em que esta nova realidade abala a posição clássica de controle tradicionalmente exercido pelo jornalismo em relação ao que deve (ou não) ser tornado público. Ao mesmo tempo, reitera o papel do jornalismo como mediação fundamental para a transmissão de informações de interesse público, uma prática hoje ainda mais complexa diante da algaravia da comunicação em rede.

Um mundo em excitação permanente

Embalados por uma versão estilizada de ‘Aquarela do Brasil’, os personagens e objetos se movem sincronizadamente num grande shopping a céu aberto. A fila do caixa flui cadenciadamente, até que alguém saca um talão de cheques: imediatamente, a música desmaia, personagens e objetos ficam travados, a fila para; constrangida, a pessoa guarda o talão, saca o cartão, a música ressurge em plenitude e tudo volta a funcionar normalmente, para a felicidade geral.

O anúncio de uma das maiores administradoras de cartão de crédito do mundo, veiculado na televisão brasileira ao longo de 2008, é uma perfeita e sintética metáfora do estado em que vivemos – ou devemos viver: um estado de permanente excitação, de movimento perpétuo, em que qualquer pausa é disfuncional ao sistema. Exatamente como no comentário de Virilio (1996, p. 108), autor que já esteve em moda: ‘Se ser é estar excitado, ser vivo é ser velocidade, uma velocidade metabólica que a tecnologia se dedica a aumentar e aperfeiçoar (…)’. Note-se que, no anúncio, o movimento contínuo da fila é interrompido não por alguém que não tem dinheiro para pagar, ou por algum rebelde ou marginal cujo ‘cartão de crédito é uma navalha’, mas por alguém que apenas acena com a possibilidade de não pagar através do meio mais adequado, que permite a transação instantânea.

Ora, sabemos que o que não pode parar é o cassino global do mercado financeiro, embora nem ele possa ignorar o ‘mundo real’, como ficou claro na recente crise das hipotecas nos EUA, rapidamente espalhada pelo mundo. No entanto, e coerentemente com a tendência do capital de estender sua lógica a todos os âmbitos da atividade humana, é essa lógica – mais propriamente falando, essa ideologia – da excitação permanente que prevalece no mundo contemporâneo: uma excitação previsivelmente canalizada para atividades lúdicas, que alimentam uma das indústrias mais lucrativas da atualidade.

O elogio de Jenkins (2006) da ‘cultura da convergência’ segue esse roteiro, a partir de uma enorme simplificação, que opõe os ‘velhos consumidores’ – considerados ‘passivos’, ‘previsíveis’, ‘silenciosos’ e ‘isolados’, que ‘ficavam onde mandassem que ficassem’ – aos novos, apresentados como ‘ativos’, ‘migratórios’, ‘barulhentos’ e ‘mais conectados socialmente’ (Jenkins, 2006, p. 18-9). A ‘nova mídia’ exorta à participação, de modo que o público deve necessariamente interferir no processo: o silêncio, a atitude contemplativa – o prazer da fruição, o distanciamento indispensável a qualquer reflexão – são associados à passividade e à acomodação.

Não é casual que o foco da análise gire em torno de produtos de entretenimento (reality shows, seriados, games, etc.). Menos ainda que se substitua o conceito de ‘público’ pelo de ‘fã’, como se pudessem ser equivalentes. Por isso, Jenkins (2006, p. 4) pode argumentar: ‘Neste momento, estamos utilizando este poder coletivo (da interação midiática) principalmente para fins recreativos, mas logo estaremos aplicando essas habilidades a propósitos mais `sérios´’, como a campanha eleitoral americana que ele analisa em seu livro. [Em 1968, a anos-luz da disseminação da internet, o escritor uruguaio Mario Benedetti publicava um conto sobre um animador de programa de auditório que propunha um jogo com uma canção, a ser modificada progressivamente pelo público. Pouco a pouco, o que era uma inocente balada de amor se transforma num protesto contra o chefe de polícia, odiado por sua truculência, e que acaba assassinado pela multidão enfurecida. Tratava-se, porém, como é óbvio, de uma alegoria literária, como outras que tantos autores produziram, especialmente em tempos de ditadura. (Cf. Mario Benedetti, ‘El Cambiazo’, in La muerte y otras sorpresas, México D.F., 1982, p. 82-89, 17ª edição)] Daí a pergunta:

Como gerar o mesmo nível de energia emocional que os fãs normalmente canalizam contra os poderes constituídos em Hollywood para desafiar os detentores do poder em Washington? Quando seremos capazes de participar do processo democrático com a mesma facilidade com que participamos de mundos imaginários, construídos pela cultura popular? (Jenkins, 2006, p. 234).

Nunca – eu diria –, porque se trata de situações de natureza distinta. Logo, como deveria ser óbvio, a comparação é impertinente. A distância entre participar de jogos de ‘realidade alternativa’ – com tudo o que isso possa significar para os estudiosos do universo psi – e a tomada de decisões que afetam a vida política e cotidiana de cada um deveria ser suficiente para demonstrar o equívoco da pergunta. Porém, Jenkins entusiasma-se com as ‘brincadeiras’ feitas pelo público – sem distinguir o nível de seu comprometimento com tal ou qual candidatura – durante a campanha presidencial americana de 2004. Poderia ter lembrado o que ocorreu em 2000, durante a expectativa diante da votação decisiva na Flórida, que acabou dando a controvertida vitória a Bush. Na época – como mostra uma foto divulgada pela agência Reuters em 10 de novembro daquele ano –, eleitores democratas protestavam: ‘This is not a game! This is our nation´s future! Let us be responsible!‘. Para a mídia, porém, tudo era mesmo um jogo: seja o da competição entre as redes de TV, que exaltavam os sucessivos recordes de acesso em seus sites – por exemplo, a cnn.com, que tinha em média 30 milhões de visitas por dia, registrou 10 milhões de acessos por hora –, seja pela oferta de interatividade com o ‘jogo das eleições’ noticiada então pelo Los Angeles Times:

Para os que encaram a eleição como uma contenda, a ABC News está oferecendo em seu site (abcnews.com) o ‘desafio da eleição americana’, incorporando um de seus mais populares programas de esporte online. O ‘acerte o jogo do analista’ permite aos espectadores fazer suas próprias previsões. A família e os amigos por todo o país podem acessar o jogo para testar seu conhecimento político. [‘Eleitores americanos terão as notícias o tempo todo’. L.A.Times, 8/11/2000]

Parece claro, portanto, o sentido que prevalece nesse embaralhamento entre as atividades de ‘fãs, consumidores e cidadãos’. Porém, é por esse embaralhamento de conceitos, é por essa superficialidade teórica que Jenkins (2006, p. 247-8) pode contrapor a defesa da ‘utopia crítica’, associada à nova mídia, ao ‘pessimismo crítico’ da ‘vitimização’ do público, que seria inerente à crítica tradicional: a primeira enfocaria o que estamos fazendo com as mídias, a outra, o que as mídias estão fazendo conosco. Fugir ao discurso clássico e empobrecedor das teorias da manipulação é certamente louvável, porque estimula a pensar na relação dialética entre dominadores e dominados, entre a mídia e seu público; mas não é essa a perspectiva do autor, que trata os dois polos como forças equivalentes, que apenas ‘interagem’ – embora reconheça, assim de passagem, que ‘corporações (…) ainda exercem muito mais poder que qualquer consumidor individual’ (Jenkins, idem, p. 3). [Apenas a título de exemplo, a classe média/alta brasileira, que tem recursos para contratar algum serviço de TV por assinatura, sabe perfeitamente o seu poder de interferência na programação, quando a empresa decide cancelar a oferta de determinados canais.]

De fato exercem, e continuarão a exercer esse poder, enquanto as bases do sistema não mudarem, nas relações sociais concretas do mundo real. Embora também entusiasta da ‘nova mídia’, Caio Túlio Costa aponta que a rede tem, sim, um centro:

Apesar de uma percepção diferente e aparentemente democratizante, há um controle da rede mundial. Quem a controla? Com quais propósitos e com quais poderes? Uma simples decisão tomada num único país, Estados Unidos, pode bloquear o acesso à rede em qualquer parte do mundo porque ali se administram os principais servidores dessa mesma rede. (…)

A dispersão dos indivíduos cria a sensação de democracia na rede. Na realidade, em várias medidas, o acesso à rede está tanto nas mãos dos Estados Unidos quanto de instituições, empresas e governos que podem mudar regras e criar barreiras tecnológicas e/ou financeiras a ela. (…) (Costa, 2009, p. 237).

É aí que esbarra a proposta de uma nova ‘ética de compartilhamento’ e de deliberação coletiva, própria ao suposto caráter ‘descentralizado’ da rede: seja no sistemático monitoramento do usuário – como consumidor ou como trabalhador, constatável nas experiências práticas da vida cotidiana–, seja na ação de grupos de pressão e de organizações sociais da mais variada índole ideológica, que previsivelmente utilizam a rede de acordo com seus interesses. [São frequentes as matérias que mostram as tentativas de mapeamento do perfil do usuário para fins comerciais na internet (cf., por exemplo, Eric Pfanner, The Paradox of Privacy, in The New York Times, 13/07/2009). Numa perspectiva mais abrangente, Bruce Schneier, em uma série de artigos em seu site, demonstra que não há privacidade na rede (cf., especialmente, Should We Have an Expectation of Online Privacy?, maio de 2009). No caso das relações de trabalho, as empresas têm progressivamente ampliado o controle sobre o uso da internet. A propósito, uma aluna minha acidentalmente forneceu um exemplo especialmente eloquente: estagiária em um call center de telefonia móvel, relatou que não tinha acesso ao seu e-mail particular na empresa, cujo slogan – ‘viver sem fronteiras’ –, portanto, e paradoxalmente, não se aplicava a seu próprio território.] Nada disso deveria surpreender, pois o mundo virtual reflete – e amplifica, considerando suas características próprias – as contradições e relações de força presentes na sociedade.

Mas o mais relevante aqui é perceber que esse apelo à excitação permanente – próprio do narcisismo e hedonismo de uma geração que cresceu com uma atitude ‘o que eu quero, quando eu quero’ (Jenkins, 2006, p. 244), que Freud não teria dificuldade em diagnosticar –, esse apelo não prevê dilemas éticos.

Se tudo é uma brincadeira, por que não gravar a cena de sexo com a namorada e disponibilizá-la no Youtube ou no Orkut – seja pelo simples voyeurismo, seja por uma forma de dar o troco pelo fim do namoro? Por que não – no melhor estilo ‘Laranja Mecânica’ – despir e estuprar a jovem bêbada e inconsciente numa festa e divulgar a imagem na rede? Por que não sair por aí espalhando os boatos mais estapafúrdios, apenas para se divertir, sem qualquer consideração pelas consequências?

E quando, pelo contrário, tudo está bem longe de ser uma brincadeira, e obedece aos mesmos interesses que promovem ‘balões de ensaio’ e notícias ‘plantadas’, velhos conhecidos da mídia tradicional?

A natureza do jornalismo

Como ocorre normalmente diante de toda novidade tecnológica, a emergência da ‘nova mídia’ trouxe consigo uma profusão de teorizações apressadas, tanto catastrofistas quanto laudatórias. Entre estas, destacam-se as que decretaram o fim ou a mudança de natureza do jornalismo, ‘de uma aula para uma conversa’ (Bowman e Willis, 2003; Gillmor, 2004), como se o jornalismo tradicional fosse uma atividade castradora da livre expressão do público, agora viabilizada pela disseminação da tecnologia digital.

Seria excessivo retomar aqui os argumentos em contrário, que detalhei em outra ocasião (Moretzsohn, 2007, p. 255ss) e que, a meu ver, continuam válidos. Porém é importante reafirmar a natureza do jornalismo, que permanece como uma mediação fundamental para a vida democrática, por sua legitimidade historicamente determinada e pelo seu caráter de referencialidade em relação aos fatos socialmente relevantes, ou – como se costuma dizer – de interesse público. Pelo mesmo motivo – e por vários outros, que incluem a diferença de status entre cada uma dessas forças -, insisto em que não é possível dizer que os quatro atores do processo de informação (fonte, jornalista, empresa e público) ‘passaram a se digladiar em pé de igualdade’ (Costa, 2009, p. 226).

No entanto, é claro que dois problemas se colocam diante da nova realidade: primeiro, a maior complexidade da atividade jornalística, considerando a dificuldade de confirmação das informações, dados o ritmo cada vez mais intenso do trabalho e a multiplicidade de fontes – muitas delas anônimas, ou de identidade duvidosa – a ‘comunicar’ instantaneamente na rede; segundo, a perda do controle, tradicionalmente exercido pelo jornalismo, relativamente ao que deveria e poderia ser tornado público, com – mais uma vez – a agravante da hipótese do anonimato, que impede a responsabilização pela autoria. E isto representa um problema ético inédito para a sociedade.

Os riscos da informação instantânea

O primeiro caso é pródigo de exemplos, que decorrem também, e talvez principalmente, da competição desenfreada entre as empresas jornalísticas, radicalizada na era do ‘tempo real’. A notícia da morte de Michael Jackson e o vídeo que circulou com a cena da morte de uma jovem iraniana durante os protestos contra a alegada fraude na reeleição do presidente Ahmadinejad são os dois exemplos recentes mais relevantes dessa situação.

Em meio à excitação e à profusão de exageros e boatos próprios do mundo das celebridades, o caso de Michael Jackson foi especialmente marcante porque o cantor, após anos de decadência e de escândalos sobre sua conduta pessoal, ensaiava uma ‘volta por cima’ em sua programada turnê pela Inglaterra. Veiculada em primeira mão pelo site TMZ, especializado em fofocas e factoides que sustentam o star system, a notícia da morte do popstar provocou a previsível turbulência entre os meios de comunicação, com a avalanche de informações desencontradas e simultâneas: Jackson estaria morto, Jackson estaria em coma, Jackson estaria se recuperando na UTI. De tão inesperada, a notícia levantou suspeitas, alimentadas ainda mais pelo mistério em torno do desaparecimento do corpo: a que ponto poderiam chegar as estratégias de marketing no mundo do showbiz?

O clima de especulação envolveu jornais de referência, como o espanhol El País, que destacou, em sua edição eletrônica de 29 de julho, o (suposto) resultado da autópsia que teria revelado o lastimável estado físico do cantor. Atribuída ao tabloide inglês The Sun, a matéria seria logo desmentida – ou melhor, e como é estranhamente corriqueiro no noticiário on line, o título atualizado passou a desmentir a informação, que, entretanto, continuava no ar, no corpo do texto.

O recurso a uma fonte tão suspeita mereceu o protesto de leitores e a crítica da ombudsman do jornal, que indagou: ‘deve-se verificar a informação de uma fonte pouco confiável antes de publicá-la ou é suficiente citar a origem?’ A resposta da responsável pela edição digital e do editor de Cultura expõe um problema fundamental de natureza do jornalismo on line: ‘A notícia do The Sun sobre a autópsia se propagou rapidamente pela rede e El País não poderia deixar de dá-la. (…) Num meio on line, a informação vai sendo dada e modificada constantemente. O importante neste caso é dar ao leitor elementos para avaliar a confiabilidade da fonte’. No entanto, como argumentou a ombudsman, ‘o problema é que o leitor não está constantemente on line e espera que o que lê seja sempre confiável’. Porém, o fato de que a informação possa irromper a qualquer momento…

… coloca uma questão crucial nesta transição para o jornalismo digital: a dramática contradição entre rapidez e segurança. Verificar uma informação requer tempo. Quando não se tem tempo, é importante selecionar muito bem as fontes às quais se confere crédito. A imprensa de referência cuidou de demarcar sua diferença de qualidade, de credibilidade, em relação à imprensa marrom. Mas se ela mesma a utiliza como referência e se arrisca a dar notícias falsas, como pode pedir aos leitores que valorizem essa diferença? O ‘tudo pela audiência’ que tantos estragos fez na televisão pode agora afetar a credibilidade dos jornais digitais se sua única obsessão é chegar primeiro a qualquer preço. (Pérez Oliva, 2009)

A história do vídeo que documenta a agonia de Neda Agha-Soltan é ainda mais relevante, pela dimensão política que envolve. Em 20 de junho de 2009, um vídeo postado no Youtube, rapidamente linkado pelo Facebook e pelo Twitter e por canais e sites da mídia tradicional, exibia cenas chocantes de uma jovem sangrando até morrer, em Teerã, durante um protesto contra a reeleição do presidente iraniano. Enquanto não confirmavam a autenticidade das imagens, os principais jornais cuidaram de divulgá-las com esse alerta. Em sua coluna na Folha de S.Paulo (‘Toda Mídia’, 22/6/2009), Nelson de Sá escreveu: ‘Não importa, Neda, como foi chamada, virou `um símbolo da crise iraniana cada vez maior´, avaliou o site da revista Time. E o levante encontrou sua `mártir´’. Dias depois, foi possível confirmar a veracidade do fato e a identidade da moça.

Daria na mesma – do ponto de vista da ética jornalística – se a imagem tivesse sido forjada, ainda que pudesse simbolizar o grau de violência do governo iraniano contra os manifestantes?

A resposta deveria ser óbvia, dada a necessidade de respeito ao caráter referencial – o respeito à verdade factual e, nesse sentido, à objetividade – que orienta o jornalismo. A facilidade com que se menospreza essa questão depende do contexto político e revela outro problema ético: quando o que circula como informação é conveniente, do ponto de vista ideológico – como no caso em questão, em que as denúncias de fraude contra o candidato apoiado pelas principais forças políticas ocidentais ganharam espaço imediato na mídia –, a tendência é acolhê-la como verdadeira. Em situações controvertidas, costuma-se estar mais alerta à hipótese de fraude e apelar aos princípios éticos elementares de credibilidade, ao mesmo tempo em que se põe em causa as dificuldades enfrentadas para o exercício adequado do jornalismo em ‘tempo real’. A propósito, a invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003 forneceu vários exemplos, logo nos primeiros meses do conflito: jornais do mundo todo publicaram uma foto que seria de um soldado americano negro capturado pelo inimigo, quando se tratava da imagem de um boneco de plástico; noticiaram o fantasioso resgate ‘espetacular’ de uma soldado americana em um hospital iraquiano; e divulgaram, como verdadeiro, o vídeo que um jovem americano forjou, filmando-se a si próprio em casa, como se tivesse sido sequestrado por rebeldes iraquianos, apenas para mostrar a fragilidade do sistema de filtragem de informações da mídia, especialmente em tempos de histeria patriótica.

No Brasil, já entrou para a história do anedotário do jornalismo digital o caso da suposta queda do avião da empresa Pantanal no Centro de São Paulo, publicada no site da Globo News na tarde de 20 de maio de 2008 e imediatamente reproduzida em vários outros sites e blogs jornalísticos de referência, quando se tratava apenas de um incêndio numa loja de colchões. O contexto da ‘crise aérea’ por que vinha passando o país, com o grave acidente com o avião da TAM no aeroporto de Congonhas no ano anterior e uma série de outras pequenas ocorrências preocupantes, contribuiu para o açodamento do jornalista, que teria captado uma frequência de rádio em que o piloto, prestes a aterrissar, indagava à torre de comando do aeroporto o motivo da fumaça que avistava ao longe, e confundiu tudo, concluindo que a fumaça era consequência da queda do avião. O mal-entendido foi rapidamente desfeito, mas chegou a provocar acusações contra o governo e a Infraero, acusada de negligente e incompetente após afirmar que não tinha informações sobre qualquer acidente.

Mais relevante ainda, por seus desdobramentos, foi a notícia da agressão a uma jovem brasileira na Suíça, que teria sido atacada por skinheads e, em consequência, perdido os gêmeos que esperava: de fato – e por motivos ainda não esclarecidos -, a moça inventou tudo, inclusive produzindo fotos que supostamente comprovariam a violência, enviando-as a Ricardo Noblat, um dos mais prestigiados jornalistas de política do país, que as publicou em 11 de fevereiro de 2009 em seu blog e ‘bancou’ a denúncia [Cf. ‘Blog do Noblat’, ‘Brasileira torturada na Suíça aborta gêmeos‘]. Embora uma análise mais atenta das imagens permitisse duvidar da autenticidade das lesões, todos os jornais, sites e TVs reproduziram a história, com alarde suficiente para envolver algumas das mais altas autoridades do país – o secretário nacional de Direitos Humanos, o ministro das Relações Exteriores e o próprio presidente da República -, que tampouco tiveram o cuidado de confirmar as informações e reagiram intempestivamente, por pouco não produzindo um incidente diplomático. [O caso foi amplamente debatido nas edições eletrônicas do Observatório da Imprensa de fevereiro e março de 2009. Em 16 de outubro de 2009 os jornais brasileiros noticiaram o indiciamento da brasileira pela Justiça suíça, sob a acusação de haver forjado toda a história.]

O episódio serviu também para revelar que, na era da internet, distinções significativas na prática do jornalismo, como o zelo pela preservação da imagem dos envolvidos em denúncias de violência, acabam se diluindo. De fato, no início os jornais suíços evitaram identificar a moça, borrando-lhe o rosto quando publicavam alguma foto dela, mas a providência era inútil porque os jornais brasileiros não agiam do mesmo modo e a imagem circulava na rede, acessível a qualquer um. Não vai aqui, no caso específico, nenhuma crítica aos nossos jornais, porque a iniciativa de divulgar as fotos partiu da própria moça; além disso, a preservação da imagem seria improvável, pois quem desejasse poderia obter alguma foto dela no Orkut.

A fragilidade da mediação jornalística na era da ‘nova mídia’

E aqui chegamos ao segundo problema, característico desses tempos em que ‘todos’ podem divulgar ‘tudo’ através da tecnologia digital: ainda que houvesse um consenso entre os jornalistas sobre o que é lícito publicar, a informação – verdadeira ou não, ou verdadeira mas inconveniente ou imprudente – dificilmente deixaria de circular por outros meios. Significa dizer que a informação produzirá efeitos, ainda que não os mesmos, nem na mesma intensidade, que produziria se os jornais de referência lhe atestassem credibilidade.

Alguns casos recentes ocorridos no Brasil são muito significativos: o do adolescente que combinou com o irmão filmá-lo fazendo sexo com a namorada para depois jogar o vídeo na rede; o da jovem, também adolescente, que embriagou-se numa festa e, desacordada, foi despida e estuprada por alguns rapazes em Joaçaba, no Paraná, que também filmaram a cena e a divulgaram na internet; o da professora fotografada nua e em cenas de sexo com o namorado, que publicou as imagens num site de relacionamento – com o nome e o telefone dela, como se se tratasse de uma garota de programa – como vingança pelo rompimento do namoro. Todos esses casos geraram processo judicial e foram noticiados com o devido cuidado pelos jornais em geral, porém o dano à imagem das vítimas já era irreparável.

Outros casos dizem respeito ao uso indevido do twitter, a mais recente febre entre os consumidores de novidades tecnológicas. Muitos deles envolvem boatos relativos a celebridades do mundo da TV, causando-lhes os previsíveis transtornos [Cf., por exemplo, ‘Falsários `roubam´ nomes de famosos para espalhar boatos em perfis do Twitter’, in Folha de S.Paulo, 24/07/2009].

Já a conveniência da divulgação de informações com potencial repercussão política será sempre controversa. O exemplo clássico é o do caso Monica Lewinski, detonado no blog de Matt Drudge, que tornou inúteis os esforços dos grandes jornais americanos de abafar a história ou mesmo de divulgá-la com mais cautela. Já o sequestro do repórter David Rohde, que ficou em poder dos talibãs, no Afeganistão, entre novembro de 2008 e junho de 2009, pôs em causa a responsabilidade dos usuários da rede e as dificuldades para controlá-los: o New York Times empenhou-se em esconder a informação, temendo pela vida de seu repórter e pelas dificuldades de negociação, mas houve quem divulgasse o fato na página sobre o jornalista na Wikipédia. Começou então uma briga de gato e rato: as postagens eram sistematicamente apagadas e logo republicadas, a ponto de o jornal apelar para a colaboração do próprio fundador da Wikipédia, James Wales, no monitoramento da página, que chegou a ser bloqueada. Só quando o repórter conseguiu escapar a informação foi adequadamente divulgada, incluindo a menção às negociações que levaram à ocultação da notícia [Cf. Richard Pérez-Peña. ‘Keeping News of Kidnapping Off Wikipédia’, in The New York Times, 20/07/2009. Cf. também http://en.wikipedia.org/wiki/David_S._Rohde].

A insistência em tentar publicar informações sobre esse episódio neste endereço específico – quando, em tese, a notícia poderia ter circulado por uma infinidade de blogs – só pode se justificar pelo velho critério da credibilidade que a própria Wikipédia procura cultivar, embora através de processos distintos dos do jornalismo tradicional – por exemplo, a aposta na autocorreção, pela ‘comunidade’ de colaboradores voluntários. Não cabe aqui discutir se esse processo é adequado e confiável, mas ressaltar a necessidade da busca de parâmetros para a informação de referência, mesmo – ou talvez principalmente – nesses tempos em que tudo parece fluido, etéreo, impalpável e incerto.

O comportamento da Wikipédia nesse episódio foi amplamente debatido em blogs e sites como o Slashdot. Houve quem aceitasse os motivos para a ocultação da notícia. Não foram raras as acusações de ‘censura’. Mas talvez quem resumiu melhor o dilema que este caso apontou tenha sido Kim LaCapria, no blog ‘The Inquisitr‘: ‘Felizmente para a Wikipédia, esta era claramente uma questão de vida ou morte. Mas e se não fosse? Ou se envolvesse uma pessoa comum e não um repórter do New York Times? [A dúvida aparentemente não procede, porque é praxe entre as empresas jornalísticas evitar divulgar informações sobre sequestros e outras ameaças, como forma de preservar a integridade das vítimas e evitar interferir na condução das negociações. A esse respeito, aliás, o episódio do sequestro e morte da jovem Eloá Pimentel, num conjunto habitacional de Santo André, em São Paulo, em outubro de 2008, foge completamente à regra: ali, jornalistas e apresentadores de programas populares de rádio e TV falaram diretamente com o sequestrador, ao vivo, sem que as autoridades intercedessem, cortando a ligação ou a transmissão do diálogo. Foram três dias de tensão, ampliada pela cobertura sistemática que frequentemente interrompia a programação normal, até o desfecho trágico, com a morte da jovem. Pela sua gravidade e pelo que representa quanto à (ir)responsabilidade da mídia e das próprias autoridades, o caso mereceria um estudo à parte.] E como é possível impedir as pessoas de espalhar informações potencialmente prejudiciais? Deveríamos agir assim? Nesse caso, em que situações? [Cf. Kim LaCapria, 29/06/2009]

A questão dos limites, para além do jornalismo

‘A possibilidade de qualquer um ter nas mãos uma ferramenta de comunicação capaz de atingir milhões de pessoas é (…) inédita e por isso espantosa’. É com esta frase que Caio Túlio Costa (2009, p. 259) conclui seu mais recente livro, em que procura enfrentar a relação entre ética, jornalismo e ‘nova mídia’. Sua proposta é oferecer mais perguntas que respostas, mas esse estimulante convite à dúvida acaba derivando para uma perplexidade ancorada no relativismo mais radical, em vez de sugerir hipóteses para o enfrentamento de questões tão complexas.

O tema central de sua obra é a contradição entre o ideal normativo das prescrições éticas e a prática cotidiana do jornalismo. Como toma ambos em termos absolutos, enxerga uma oposição também absoluta entre esses dois campos. Por isso, insiste tanto na referência ao fato de que ‘o jornalista mente’ para obter uma informação. Por isso, sugere que o jornalismo trabalha ‘no vácuo da ética’. Daí o seu conceito de ‘moral provisória’, na verdade uma derivação de uma leitura equivocada da ‘ética de responsabilidade’ de Weber, que seria, por essa interpretação, capaz de justificar o que quer que seja.

A questão dos procedimentos, por exemplo: na era da convergência midiática, ‘para o indivíduo que virou protagonista de um vídeo de sucesso instantâneo e mundial, baseado na captura de imagens de uma celebridade, é relativo se aquilo foi capturado e publicado de forma legal ou ilegal – a rede desmantelou esse conceito, o de legalidade’. (Costa, 2009, p. 237).

Não se trata, portanto, de ‘moral provisória’, mas da mais absoluta amoralidade. Porém, de fato, se ‘tudo é relativo’, como seria possível discutir ética, se não há parâmetros nos quais se basear?

Retornamos aqui ao narcisismo e hedonismo da geração que se criou na base do ‘eu quero, quando eu quero’: uma geração que não conhece limites.

Ora, discutir ética significa exatamente discutir o estabelecimento de limites.

Entretanto, na era da ‘nova mídia’, em que (em tese) qualquer um pode dispor de uma ferramenta para comunicar em escala infinita, a discussão sobre ética ultrapassa largamente o âmbito da prática jornalística.

Com uma agravante: a incerteza ou a ausência da identificação de autoria. Ética implica responsabilidade, e é claro que não se pode responsabilizar quem se esconde sob pseudônimo. E como a internet é, na feliz expressão de Castanheira (2004), o ‘reino do anonimato’, pode-se calcular a dimensão do problema e das dificuldades de se tratar da ética nesse novo contexto.

Escrevendo sobre as hipóteses de controle da opinião que circula em blogs e listas de discussão sobre política na internet – sobre a licitude e legitimidade desse controle, sem entrar em considerações sobre as possibilidades técnicas de realizá-lo –, Gomes (2001) sintetiza o dilema da ética na rede:

…a fantasia do pior dos mundos possíveis que orienta o horror à regulamentação de conteúdos seria aquela de um mundo kafkiano onde você acorda com o censor revirando suas anotações, onde você pode a cada momento se deparar com um simplório delegado de polícia mexendo em seus disquetes, controlando suas conversas ou espiando sua home page para determinar, com base na sua (dele) avaliação das coisas, o que pode ou não pode ser publicado dentre as coisas que você pensa e quer dizer ou para estabelecer penas, reprimendas e perseguições pelo que você já publicou. Simetricamente, o pior pesadelo dos defensores das restrições à liberdade de expressão seria um mundo infernal onde qualquer indivíduo pudesse passar, sem peias nem filtros, das suas disposições internas, gostos, preferências e convicções íntimas emocionalmente constituídas para a expressão e publicação disso, sem importar a qualidade cognitiva ou moral das suas convicções, preferências e disposições. Se nos espantaria um mundo em que qualquer um pudesse pichar o muro em frente à minha casa com expressões como ‘negro imundo’, ‘judeu sujo’, ‘morte aos homossexuais’ sem que nada lhe acontecesse, mais assustador parece ser um mundo em que alguém pudesse disponibilizar instantaneamente em rede, para milhares e milhares de pessoas, o correspondente em bytes de tais expressões e de forma igualmente impune. A cada um o seu pesadelo, mas alguém pode ter razão?

Gomes conclui que sim, considerando a tradição do racionalismo moral, em que ‘uma norma só pode ser aceita ou imposta se puder ser submetida a procedimentos demonstrativos e se a evidência da sua razoabilidade puder, aí, ser mostrada’. Assim,

…um juízo de valor vinculante, o único que pode apoiar ou justificar a intervenção reguladora, só é válido (a) quando a norma que o orienta tiver sido objeto de um discurso prático e superado o seu exame, sendo essa superação manifestada num consenso racional e (b) quando o próprio juízo se expuser leal e argumentativamente na esfera pública e puder ser apoiado por um consenso razoável e, aspecto muito importante, revisável.

Caso contrário, correríamos o risco de, como tem acontecido historicamente, a ética ser usada como álibi para o seu contrário, a barbárie e a brutalidade pseudofundada em argumentos morais. A possibilidade da ofensa e discriminação correntes é tão desagradável quanto a da existência de um Torquemada cibernético a destroçar os nossos computadores e sites para, presumivelmente, destruir o mal que habitaria os seus corações.

Referências

BOWMAN, Shayne; WILLIS, Chris. We Media. How audiences are shaping the future of news and information. Stanford: The Media Center at The American Press Institute, julho de 2003. Disponível aqui.

CASTANHEIRA, José Pedro. No reino do anonimato. Estudo sobre o jornalismo on line. Coimbra: Minerva Coimbra, 2004.

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Professora de jornalismo no Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense