Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O paradoxal Vaticano de Francisco

Sorrateiramente noticiada pelos principais jornais do mundo, a volta do papa emérito Bento 16 às muralhas sagradas do Vaticano não foi tão chocante, ou chamou qualquer atenção da imprensa, como sucedeu no seu sobrevoo do Castelo Gandolfo no dia 28 de fevereiro deste ano. O teólogo alemão renunciou ao posto máximo da Igreja Católica Romana no dia 11 de fevereiro, mediante um surpreendente discurso ao consistório ordinário que presidia. Após oito longos e críticos anos, a Igreja Católica capitaneada por Bento 16 – segundo Hanna Arendt, o “topo da pirâmide” abaixo apenas da transcendência – viveu uma de suas mais intensas crises desde os bombásticos eventos que reunificaram a Itália e chacoalharam os pilares terrenos do catolicismo romano.

Os processos revolucionários singulares de Vitor Emanuel e Garibaldi, culminando com a dissolução dos Estados pontifícios em 1870 e a gestação do Estado do Vaticano como hoje o concebemos – rememoremos: amamentado anos depois pelo ditador fascista Benito Mussolini e sua jovial concordata de Latrão –, fez da Santa Sé e de seus mais ilustres purpurados os mantenedores do atual Palácio Apostólico. Foi durante o breve, mas intenso, pontificado de Bento 16 que se desenrolou um leque de escândalos comparáveis apenas às luxuriosas orgias renascentistas nas antigas cortes papais. Segundo o teólogo Leonardo Boff, tal pontificado chegou a um ponto de “altíssima desmoralização, com práticas até criminosas que não podem mais ser negadas”.

Foi apenas por meio do livro Sua Santidade: As Cartas Secretas de Bento XVI que o jornalista investigativo Gianluigi Nuzzi revelou ao mundo os bastidores da Igreja Católica, as intrigas políticas entre o Sacro Colégio e facciosismos entre os prefeitos da Cúria e a chancelaria de Tarcisio Bertone, cardeal italiano que até os nossos dias faz-se secretário de Estado e assuntos exteriores. Soube-se através do jornal La Repubblica que Ratzinger ordenara em outubro de 2012 uma comissão especial de três cardeais octogenários com o intuito de investigar a fundo os moradores do Vaticano. Em oitenta anos de vida, o velho amante das missas em latim, de cantos medievais e da liturgia tridentina jamais havia presenciado tamanha devassidão em tão pouco tempo.

“Trópico dos pecados”

Camerlengo durante o breve conclave que fez Jorge Mario Bergoglio o atual pontífice, Bertone ainda ocupa o cargo que, segundo vaticanistas, foi o responsável pela renúncia de Bento 16. Pressões internas e conflitos entre prelados não são nenhuma novidade. Gregório 12, o último papa a renunciar, tomou decisão parecida em meio a impasses violentos que, segundo Pierre Pierrard, dividiram a Cristandade ao meio. Em 1415 Gregório deixava o trono pressionado pelo Grande Cisma do Ocidente.

Mas voltemos ao século 21. No dia 13 de março, sobre as extensas sacadas de mármore da basílica de São Pedro, o gago Jean-Louis Tauran anunciou: “Habemus papam!” O jesuíta Francisco, o primeiro latino-americano a sentar-se ao trono de São Pedro – tendo trocado o de ouro em homenagem a Leão 13, por um de madeira simples – também deixou de usar sapatos Prada, os preferidos de Ratzinger, assim como a indiscreta cruz de ouro sobre o peitoral. Simplicidade e carisma. Duas palavras que permeiam a figura brincalhona do papa Francisco (será?).

A mesma figura dará as caras por aqui no fim de julho, quando presidirá a Jornada Mundial da Juventude; megaevento que fascina centenas de milhares de fiéis ao redor do globo – não apenas jovens, mas crianças e também idosos. Falando nisso, sabe-se que as principais favelas e morros cariocas visitados pelo sumo pontífice, espaços de miséria simbólica das quais as telenovelas brasileiras tanto se orgulham, segundo o jornal Estado de S. Paulo estão sendo “banhadas de lojas”. Já suas fachadas estão sendo reconstruídas pelas prefeituras municipais com “atenção” e “carinho”. Afinal de contas seus habitantes merecem, não acha? “Só assim para a prefeitura arrumar tudo o que tem pra fazer”,desabafou a dona de casa Ivanete de Jesus, moradora de Varginhas, zona norte do Rio.

E o papa não estará sozinho. O ostentatório Estado brasileiro cederá a Força Nacional, oito mil militares e quatro mil e quinhentos policiais visando à segurança do pontífice, seu cortejo bajulador de purpurados e o restante dos fiéis que se deslocarão à cidade maravilhosa. Não obstante, o passeio de Francisco pelo “trópico dos pecados”, como conceituou o historiador Ronaldo Vainfas, custará aos cofres públicos R$ 118 milhões. Uma pechincha, não?

Papa almeja o diálogo

Investigações recentes no sagrado âmbito econômico tiveram resultados surpreendentes. Corajosos repórteres do Guardian se aprofundaram a respeito das finanças vaticanas fora dos 44 hectares italianos. Renegando os já conhecidos trâmites bilionários que diariamente transitam pelas contas “suspeitas” no Instituto de Obras Religiosas (IOR) – o Banco Vaticano –, estes jornalistas encontraram os donatários de diversos imóveis comerciais milionários na Suíça, Paris e Londres: a Igreja.

As “concessões financeiras” providas por Benito Mussolini ao Vaticano nas sombrias décadas fascistas de 1920 e 1930 foram e ainda são constantemente “injetadas” em contas diversas, gerando lucros incontáveis nos mais sofisticados centros bancários europeus – uma Europa dilacerada pela mais fugaz crise econômica já sofrida pelo capitalismo. Isso nos leva a crer que muitos ainda são devotos à máxima do ex-presidente do IOR, o arcebispo Paul Casimir Marcinkus: “Pode-se viver no mundo sem se preocupar com dinheiro? Não se pode dirigir a Igreja com ave-marias”.

Dito isso, como um vírus, transita pelas redes sociais um vídeo de quatro minutos no qual Francisco cativa os fiéis em sua missa semanal deixando de lado as “cinco páginas de sermões” seguidas rigorosamente pela dogmática católica, as mesmas páginas que Bento 16 e sua voz rouca e sonolenta fazia ecoar por todo o Palácio Apostólico. Ao invés disso, Francisco almeja o diálogo, o contato. Pede ao rebanho que vá até o microfone e fale, questione e critique. Uma garotinha ingênua levanta, vai até o aparelho e diz: “Por que é que renunciou a todas as riquezas de um papa, como um apartamento luxuoso ou um carro grande? Por que é que renunciou a essas riquezas?”

Nada como uma xícara de chá

Comenta-se pouco, mas Bento 16 retornou ao Vaticano pois lá adquire “imunidade diplomática”, deixando juristas e advogados incapazes de processá-lo. Os processos seriam por conta dos milhares de casos de abuso sexuais cometidos por padres e, segundo documentos institucionais do Santo Ofício, por décadas acobertadas pelos escalões superiores em face do temeroso escândalo público. Dioceses declaram falência. Já o óbolo de São Pedro, doações e gratificações generosas, decaem anualmente. A ecclesia sabe disso, e o novo pontífice conhece de perto os pecados de sua Igreja, sejam em Roma, sejam em sua terra natal – vide as denúncias de “complacência moral” durante seu pastoreio em Buenos Aires nas sangrentas décadas ditatoriais de 1970 e 1980.

Enquanto isso, o cativante e consciente Francisco, um autômato frente às seculares estruturas de poder do Vaticano, pouco age segundo o que diz. Seu próximo passo revolucionário será uma “reforma” na onipotente Cúria Romana que, historicidade à parte, encontra-se intacta desde Sisto V (1585-1590). Em suma, torçamos para que futuramente o mundo não acorde aos berros de uma jovem governanta no ínterim da madrugada, esbravejando pelos corredores palacianos que o doce papa não acordou. Gélido, estático, incolor. Ao seu lado uma xícara de chá de ervas verdes. Nada como uma xícara de chá. Ops, déjà vu. João Paulo I que o diga…

Referências bibliográficas

DUFFY, Eamon. Santos e Pecadores: a História dos Papas. Edições 70. Lisboa, 2006.

NUZZI, Gianluigi. Sua Santidade: As Cartas Secretas de Bento XVI. Ed. Leya. Rio de Janeiro, 2012.

PIERRARD, Pierre. História da Igreja. Ed. Paulus. Portugal, 1998.

ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. Ed. Perspectiva. São Paulo, 2009.

BOFF, Leonardo. A Igreja-instituição como “casta meretriz”. Leonardoboff.com.

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Luis Felipe Machado de Genaro é estudante de História, Ponta Grossa, PR