Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Não foi pelos seus ex-colegas de farda. Mas por espaço na mídia que 64 foi lembrado por Bolsonaro

Publicado originalmente no blog Histórias Mal Contadas.

A foto é dos generais que articularam o Golpe de 1964, o que aconteceu nos anos que seguintes é uma fratura exposta da história brasileira que facilmente ganha espaço nos noticiários. (Foto: Reprodução)

Na semana passada, foram enormes os espaços dos conteúdos nos noticiários nacionais e na América do Sul dedicados à decisão do presidente da República do Brasil, Jair Bolsonaro (PSL – RJ), ao negar que em 1964 tivesse acontecido um Golpe de Estado que durou até 1985. E ordenar que a data fosse comemorada pelas Forças Armadas.

Foi como dar um pontapé em uma fratura exposta, creio ser essa a melhor imagem para descrever a atitude do presidente referente a um assunto que dividiu os brasileiros e que foi varrido para baixo do tapete pela Lei da Anistia de 1979, que, linhas gerais, foi negociada entre os militares e os civis para garantir a volta ao país dos exilados políticos, entre eles o ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, e a liberdade de centenas de civis presos nos cárceres dos quartéis.

Em troca, os militares que haviam se envolvido em assassinatos, torturas e outras barbaridades contra os presos foram anistiados. Entre eles, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, descrito como um dos mais ferozes torturadores de presos políticos no período militar.

O coronel contou a sua versão dos fatos no livro A Verdade Sufocada, leitura de cabeceira de Bolsonaro. Brizola e Ustra já faleceram. Mas a ferida de 64 continua aberta. Uma boa parte da carreira de 30 anos de parlamentar do presidente foi feita defendendo o que aconteceu em 64. Foi isso que chamou a atenção da mídia e o ajudou a se tornar uma pessoa popular. Aqui chegamos ao xis da nossa história.

O que aconteceu em março de 2019? Houve um aumento na taxa de desemprego em 1,4%, o que significa um reforço no já encorpado exército de 13 milhões de desempregados. Antes de completar 100 dias de governo, a popularidade do presidente caiu em 15%. Enquanto isso, o vice-presidente da República e general da reserva, Hamilton Mourão, alargou os espaços na mídia, graças às suas avaliações bem fundamentadas dos problemas nacionais e à simpatia que conseguiu perante os repórteres.

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM – RJ), ganhou espaço nos noticiários por conta de um bate-boca com o presidente. Até o antipático Paulo Guedes, superministro da Fazenda, foi elogiado nos noticiários pelo seu empenho em explicar aos senadores o principal projeto do atual governo, a nova Previdência Social. Enquanto os noticiários mantinham um fogo cerrado contra Bolsonaro, questionando as concessões que ele fez aos Estados Unidos durante a sua visita ao presidente americano, Donald Trump.

Na última semana, tudo isso foi esquecido. E, como se fosse fogo em um monte de palha seca umedecida por gasolina, a negação do governo federal de que 1964 tenha sido um golpe de Estado e a sua ordem de que as Forças Armadas comemorassem a data tornaram-se o principal conteúdos dos noticiários. Sou repórter há 40 anos e trabalhei em redação de jornal de 1979 até 2014. Sei que não tem como deixar de noticiar esse tipo de assunto. Ainda mais vindo da boca de um capitão da reserva do Exército, que hoje é presidente da República. E dentro do atual ambiente político brasileiro envenenado pelas fake news e os xiitas das redes sociais.

Bolsonaro voltou a ser o centro da atenção da mídia. Essa discussão não vai solucionar o problema do desemprego, as negociações ao redor da Nova Previdência Social e outros grandes problemas nacionais. Mas ele deixou um legado e um aviso. O legado: no último fim de semana, vários grupos políticos de esquerda se uniram para protestar contra Bolsonaro. Se essa união vai avançar em outros assuntos, só o tempo dirá. O aviso: a nota das Forças Armadas sobre 1964 parece que foi retirada de um freezer de tão fria. O seu ponto alto foi lembrar que a imprensa apoiou o golpe. Uma leitura atenta nas entrelinhas do que foi escrito mostra que o assunto é indigesto entre os militares da ativa.

E por que o assunto é indigesto entre os militares da ativa? O principal motivo é que o Brasil de 2019 não tem nada a ver com o de 1964. Por várias questões. Uma delas, que se perfila entre as mais sombrias: o poder das facções criminosas. Em 1964, o crime organizado tinha como seu expoente os bicheiros. Hoje são as facções, tipo Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, e dezenas de outras organizações criminosas regionais. E os milicianos, quadrilhas formadas por policiais militares, que se espalharam por todo o país.

Esse tipo de organização cresce e se infiltra no Estado com uma rapidez incrível. O Rio de Janeiro é um exemplo. Até agora, Bolsonaro tem se mantido no centro das atenções, provocando discussões que não resolvem os problemas nacionais, tipo desemprego. Segue o exemplo do seu ídolo Trump, nos Estados Unidos. De alguma maneira, nós, repórteres, temos que começar a chamar a atenção do leitor para essa estratégia. Ele não age por simpatia ou ódio. Mas pelo espaço na mídia, a quem diz odiar. Imagina se não odiasse.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.