
(Foto: Gerd Altmann/Pixabay)
Assisti a dois furacões esses dias. Dois corpos em chamas que dançam entre a memória e o delírio. Não se trata de simples biografias, são portais. Um deles se chama “Raul Seixas: eu sou” e se espalha em episódios como um feitiço que não quer acabar. O outro, “Homem com H”, parece um espelho partido onde o tempo se reinventa a cada fragmento do olhar de Jesuíta Barbosa. O que mais me pegou não foi apenas o Raul, nem o Ney, embora eles sejam vastos demais para caber em nomes. O que me pegou foi o jeito de contar, o gesto de recusar a linha reta, a escolha corajosa de dizer: a vida não cabe na linha do tempo. A vida, como o palco, é feita de voltas, retornos, sustos, saltos e silêncios.
Nos dois trabalhos, o roteiro abandona a cronologia como quem abandona uma roupa apertada. Não há começo-meio-fim, há começo-fim-meio, ou meio-fim-começo. Há movimento. E movimento é narrativa. O elevador de Raul, presença mítica que sobe e desce como os estados alterados de consciência, não leva apenas o corpo. Leva a linguagem. Despenca o tempo. Derruba o espectador no vazio para que ele voe.
E voamos.
Com o olhar de Jesuíta, que não interpreta Ney, mas o incorpora. Não há mimetismo ali, há escuta. Há leitura. Há entrega. Ney atravessa Jesuíta e se reinventa nos seus silêncios, na sua fúria doce, na sua voz que desafina para desafiar. Como quando encara a câmera e diz: “Eu vou olhar.” Porque há olhares que não pedem licença, eles fendem o mundo.
E há também Ravel Andrade, que nos oferece um Raul subterrâneo, alucinado e sensível. Seu olhar está no fundo, atrás dos óculos escuros, mas pulsa. Porque o olhar, ali, se traduz em corpo. O olhar se traduz em performance. O olhar se traduz na voz, no gesto, na vertigem. Ravel não copia Raul, ele encarna. E há momentos em que não sabemos mais quem é quem. A máscara vira rosto, o personagem vira autor. E o roteiro vira vida, ou aquilo que a vida tem de mais inclassificável: o impulso de se repetir sem repetir, de dizer o mesmo por outros meios. É um cinema que nos diz: o tempo não é linha. O tempo é fenda.
Esses dois trabalhos, tão distintos em formato, se encontram na recusa. Recusam o óbvio. Recusam o didatismo. Recusam a domesticação da memória. E, no lugar disso, oferecem a desordem como método, o caos como forma, a paixão como narrativa. Em “Raul Seixas: eu sou”, o elevador é metáfora do abismo e do voo. Em “Homem com H”, o corpo é metáfora do grito e da flor. Em ambos, há um pacto silencioso com o espectador: Não viemos explicar. Viemos perturbar.
E perturba-se com beleza. Porque o que vemos ali não são vidas explicadas, mas vidas explodidas. Não há legenda que baste. Há cenas que se encerram em silêncio, cortes secos, ausências que dizem mais que longas falas. Há um pulo entre um tempo e outro, entre uma persona e outra. E em vez de nos perdermos, nos encontramos, porque esse é o milagre da boa narrativa: ela nos desnorteia para que a gente se reencontre. Raul disse que “o início, o fim e o meio” era só uma canção. Mas talvez fosse profecia.
Na era dos algoritmos e das timelines programadas, esses dois trabalhos nos devolvem a complexidade. Nos devolvem o erro. A dúvida. O ruído. A contradição. Nos devolvem o direito de sermos muitos, de sermos “e” e não “ou”. E por isso são tão necessários.
Porque a vida, meu caro Raul, meu caro Ney, não tem sentido. Mas tem som. Tem corte. Tem corpo. E, às vezes, tem um elevador que nos leva de volta ao início. Ou ao fim. Ou ao meio.
“Homem com H”, dirigido por Esmir Filho, ainda está em cartaz nos cinemas e também reverbera na Netflix. Já “Raul Seixas: eu sou”, criado por Paulo Morelli, está disponível na Globoplay.
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Richardson Pontone é professor e documentarista. Leciona nos cursos de Publicidade e Propaganda e Jornalismo na Universidade do Estado de Minas Gerais – Unidade Divinópolis.