Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os cúmplices do silêncio

A decisão do Supremo Tribunal Federal em não revisar a Lei da Anistia repercutiu negativamente em muitos países. Vou me ater, neste artigo, à repercussão em alguns jornais de Portugal e Espanha. Primeiro por ambos os países terem convivido com ditaduras fascistas em períodos coincidentes com a cruel ditadura militar brasileira. Segundo porque a Espanha vive um momento efervescente de debate, no Judiciário, sobre a necessidade de se investigar as quase 300 mil mortes que teriam sido promovidas pelo regime fascista entre as décadas de 1930 e 1970.


Em Portugal, o Público trouxe matéria curta, mas contundente, sobre a decisão. Lembrou que foram cerca de 50 mil as pessoas detidas ao longo da ditadura, 20 mil vitimados pela tortura e cerca de 4 mil mortos e/ou desaparecidos. E, ressalto eu, com a conivência e silêncio do Judiciário, controlado pelo regime. O Público foi crítico, com efeito:




‘O Brasil é uma exceção na América Latina no modo como lida com os crimes da sua ditadura. Há quem aponte para a menor escala de mortes e desaparecimentos: 4.000 pessoas no Brasil, enquanto no Chile se fala de mais de três mil pessoas numa população menor; e na Argentina de cerca de 30 mil. O principal crime cometido pela ditadura brasileira foi mesmo a tortura.’


E não deixou de lembrar algo que passou ao largo da mídia brasileira:




‘No próximo mês, o Tribunal Interamericano da Organização dos Estados Americanos vai analisar a questão no Brasil e poderá condenar o país pela sua legislação.’


Uma ferida que ainda sangra


Já o Público espanhol destacou parte do voto de Gilmar Mendes quando fez referência ao juiz espanhol Baltazar Garzón.




‘Mendes citó incluso la polémica desatada en España en torno al intento del juez de la Audiencia Nacional Baltasar Garzón de abrir una causa contra los crímenes de la dictadura franquista. Según Mendes, `cabría preguntarse si él (Garzón) no podría haber quebrado sus deberes de juez, al poner en jaque un modelo de pacto y compromiso´ que comparó al que, en su opinión, se alcanzó en 1979 en Brasil.’


Creio que a comparação, se cabe em âmbito institucional, é descabida em termos sociais. Ao contrário do Brasil, onde manifestações de massa não se registraram em torno da votação do Supremo, nem antes nem depois, a Espanha se convulsiona e milhares saem às ruas porque a Suprema Corte está acusando o juiz Baltasar Garzón de prevaricação por ele querer reabrir investigações (e covas) sobre os mortos durante o regime fascista de Franco.


Uma lei parecida com a da Anistia proíbe ações como essa e serve de pretexto para a corte (majoritariamente conservadora) ter acatado denúncia contra Garzón. Ele pode ter suas atividades suspensas por ate 20 anos, caso seja ‘culpado’. Ainda que Garzón seja punido, ele terá cumprido um papel importante para seu próprio país, mexendo numa ferida que, cauterizada, ainda sangra.


STF perdeu oportunidade histórica


A Argentina segue sendo o melhor exemplo de Justiça para seus vizinhos e seus antigos colonizadores. Todos os ex-ditadores e cúmplices da ditadura (torturadores inclusos) foram presos, ao contrário do Brasil, onde gozaram de boa morte ou seguem vivos e impunes, agora com aval do Judiciário. Grande diferença: na Argentina, organizações civis, governos e, sobretudo, o cinema (Garagem Olimpo, Cúmplices do Silêncio, Kantchaca etc.) cumprem papel importante de acerto com o passado.


No Brasil, com a exceção do movimento ‘Brasil Nunca Mais’, são raras as organizações, e mesmo os filmes, que apontam o dedo para os crimes da ditadura. Em que pese a importância de Lamarca, o capitão da guerrilha, Cabra Cega, O que é isso, companheiro? e O Ano em que meus pais saíram de férias, a temática desses filmes não é diretamente ligada à tortura. Tampouco os grandes meios de comunicação mantêm reportagens, debates ou dramaturgia dando conta do horror que o país viveu durante 21 longos anos. Não é de surpreender que a grande mídia, quase toda, tenha sido conivente com o golpe militar e os primeiros anos da ditadura, alguns por todo o período. E menos surpreendente é quando essa mesma mídia avoca o papel de partido político, como estamos assistindo atualmente.


Terá o STF refletido a indiferença da população diante dos crimes praticados com aval do Estado? Sem dúvida que os juízes do STF perderam oportunidade de promover o alinhamento do país com sua própria história. Leigo que sou em Direito, creio que se é correto o argumento dos juízes, de que a decisão de mudar leis cabe ao Legislativo, a de gerar jurisprudências é exclusivamente sua.

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Jornalista, historiador e doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal