SALA DE AULA
Pedro Celso Campos (*)
1. O que é
Reportagem não é notícia grande. Certamente é uma grande notícia porque sem um fato importante, um grande fato, não se tem reportagem de interesse para o leitor. Ter-se-á, talvez, uma espécie de picaretagem, ou uma matéria paga, que interessa a algumas pessoas, não ao universo de leitores do jornal.
Um texto maior ? nestes apressados tempos da informação online ? precisa se justificar para ser lido. Justificar-se por si mesmo, sendo um bom assunto, e justificar-se por sua construção lingüística e sua programação visual. Do contrário, não será lido, apenas ocupará o caro espaço do jornal.
Por isto não basta ampliar a notícia com "cascatas" ou "enchendo lingüiça". O leitor não é bobo. Ele está cada vez mais exigente. E antes dele há o editor cobrando qualidade o tempo todo. A reportagem é o caminho para a consagração de um repórter logo em seus primeiros anos de carreira. Mas também é a sepultura de quem tem preguiça de apurar. Pesquisar, checar dados, rechecar com outras fontes, cruzar informações, descobrir mentiras antes que elas sejam publicadas, enterrar-se em calhamaços de documentos, pedir ajuda a quem entende para estudar papéis técnicos e balanços, andar muito, ouvir muito, perguntar muito e ter a sorte de contar com uma boa equipe, com um editor competente e um programador visual ainda mais… eis o caminho da boa reportagem.
É preciso sorte, também, para estar numa empresa que acredita no valor da reportagem e por isso investe recursos nela, em vez de optar por um jornalismo rapidinho, baratinho, inutilzinho, destinadinho a ser varrido do mapa pelo concorrente em questão de tempo. A boa reportagem é trabalho demorado. O livro-reportagem, por exemplo, leva meses, anos para ser concluído.
Por isso, bons jornais têm sempre uma equipe com os melhores profissionais trabalhando assuntos em profundidade que vão resultar em grandes matérias. Na fase de levantamentos o trabalho exige discrição, sigilo mesmo, para que o assunto não vaze, o que poderia abortar a matéria por ferir algum interesse inconfessável. Imagine-se a pressão dos corruptos sobre um repórter se souberem que ele está prestes a relevar fatos escabrosos do Detran, da polícia, de uma empreiteira, de grupos políticos, ministérios etc. O repórter deve ter a habilidade de não "abrir" totalmente a suas fontes o teor da matéria, apenas o suficiente para obter as informações de que precisa. Ao mesmo tempo deve ter o zelo ético de ouvir todos os envolvidos para não ser injusto, deixando claro quando a pessoa citada se recusou a falar.
Boas reportagens transformam-se em pauta para os demais jornais e para a televisão. Na verdade, em muitos casos o repórter de jornal tem mais facilidade para levantar informações porque pode se infiltrar melhor nos ambientes, enquanto a equipe de TV exige, forçosamente, uma parafernália enorme que logo chama a atenção e muitas vezes afugenta fontes preciosas.
De um modo geral, a dinâmica da TV não comporta detalhes de documentação que o jornal pode apresentar. Números, documentos, dados comparativos alcançam melhor entendimento quando impressos, preto no branco: as pessoas podem ler, reler, conferir, arquivar. É inegável que a TV tem vantagens, como o alcance imediato do país inteiro. Como negar o impacto das imagens da PM paulista espancando pessoas indefesas na Favela Naval? Ou as cenas de trombadinhas em plena ação na Praça da Sé? Mas no dia seguinte os interessados vão procurar o jornal para conferir detalhes que escapam no vídeo e que não se pode arquivar, pois o telespectador comum não assiste à programação das emissoras com o videocassete pronto para a gravação.Nem mesmo a maioria das agências de publicidade tem recursos para gravar simultaneamente várias programações de TV, o tempo todo.
Ainda no campo das definições, pode-se dizer que a reportagem é uma arte. Isso porque a reportagem não pode ater-se apenas ao relato factual, porque não é um relatório frio, como um processo judicial ou um inquérito policial, nos quais há muitos dados mas não há reportagem: não está presente ali a arte de escrever, não há um estilo, uma interpretação jornalística dos fatos. Pelo menos não há um sentido para os fatos, uma contextualização, uma humanização do relato.
Em A arte da reportagem, volume 1 (Igor Fuser, org., São Paulo, Scritta, 1996), o apresentador da obra, Eugênio Bucci, define: "A reportagem, como a arte, tem a necessária pretensão de iluminar o significado, de apontar uma direção acima do caos dos eventos cotidianos." Para alcançar este objetivo, "o repórter deve entender o que tem a narrar. E, para entender, precisa sentir. Só então ele ordena o caos (e escreve, encadeando os fatos como são encadeadas as palavras). Porque o repórter sente, as reportagens emocionam. Porque ele entende, elas informam. (Informação, não custa repetir, é um dado que contém sentido para o leitor. Ou não será informação, mas apenas um dado a mais, perdido)."
"A arte da reportagem é trazer à luz a informação que é notícia ? aquela cujas repercussões tendem a alterar a expectativa dos fatos futuros… Vivemos um momento em que a imprensa proporciona uma gigantesca oferta de dados, mas carece de informações; anda atulhada de opiniões, mas raquítica em visão de mundo; lista fatos e mais fatos, mas quase não tem reportagem. A reportagem só é arte (e bom jornalismo) quando foge da indiferença e traz, em sua narrativa, a pretensão de compreender o que se passa", diz.
2. O que é necessário
Como em tudo na vida, uma boa reportagem começa com uma boa idéia, com a intuição do repórter para farejar fatos sensacionais ou muito graves. Depois que todos os jornais estão criticando o uso de aviões da Força Aérea para ministros e presidentes de Tribunais passarem férias com a família em Fernando de Noronha fica muito fácil e até redundante escrever sobre o assunto. Mas o primeiro a atacar o problema, a pesquisar e revelar o que descobriu, com coragem, clareza e transparência, este sim não será visto como mais um repórter.
O start para a grande idéia vem da percepção para entender o que está por trás de uma simples nota de coluna, de uma declaração em off, de uma frase solta numa entrevista coletiva, de uma conversa de bastidores, de um encontro sindical. Às vezes a suspeita não se confirma, mas o repórter deve estar sempre atento.
Depois da grande idéia é preciso planejar uma boa pauta, montar um bom roteiro, traçar um plano de ação, partir para a pesquisa, botar o pé na estrada sem medo de enfrentar todo e qualquer tipo de dificuldade, como ensina o saudoso Marcos Faerman no livro Repórteres, organizado por Audálio Dantas. (São Paulo, Editora Senac, SP, 1998.) O sacrifício se paga, por maior que seja, quando o jornalista vê seu texto publicado e gerando reações positivas na sociedade para melhorar as pessoas, as instituições, o país. Ser jornalista não é ganhar dinheiro (porque vender carro usado dá mais). É mudar o mundo.
"Fare il giornalista è molto faticoso, ma è meglio che lavorare", pilheriam os italianos, segundo conta Mauro Santayana em Repórteres. É uma profissão para grandes mentes e grandes corações. Sobre a reportagem, Audálio Dantas adverte: "É preciso ter coragem para ver, coragem para contar o que viu, coragem para espantar o medo, coragem para conviver com o medo."
Quem parte para a investigação jornalística deve "domesticar a arrogância de pensar que sabe tudo. Ela é inimiga da boa investigação", orienta Carlos Wagner, de Zero Hora. E completa: "A prepotência é inimiga mortal do repórter." José Hamilton Ribeiro (ex-Realidade) define a boa reportagem como "uma vitória repentina" ou, então, como "um ato de amor, de ilusão, de crença no ser humano… mas o jornalista tem de ter fé."
Para fazer a boa reportagem o jornalista deve escapar dos limites da redação e não se prender a rodinhas de amigos, porque a grande notícia tem que ser buscada, checada, conferida ali onde o homem está, no meio do povo, na rua, nas esquinas do mundo.
José Hamilton ensina ao repórter iniciante: "Olho aberto para o mundo… com os sentidos todos aguçados para captar cada detalhe e, com eles, compor um bom conjunto. Aí é sair para o abraço ou o brinde." Ele também orienta que se deve ter muito cuidado com as fontes: "O que se ouve, convém registrar como versão. O fato mesmo depende de mais observação."
Ganhador de prêmios internacionais no exercício da profissão, Lúcio Flávio Pinto diz que "boa informação nunca fez mal à sociedade. Mas, para encontrá-la, é preciso muito esforço, persistência, aplicação e criatividade. Ela não se oferece fácil. Pode estar oculta, prosaicamente, num balanço contábil, por exemplo. É preciso desfazer a maquiagem dos números para saber o que ocultam". Segundo ele, "jornalismo é impulso movido, principalmente, pela indignação".
Marcos Faerman define a reportagem como "a arte de reconstruir os fatos com documentação. É um método de investigação da realidade que difere da historiografia, da sociologia ou da antropologia e que tem como centro a arte de investigar os fatos e saber descrevê-los. Isto se faz com melhor ou pior qualidade e tem muito a ver com a formação cultural de quem escreve".
Mauro Santayana (ex-Jornal do Brasil), também citado em Repórteres, acha que o jornalista iniciante deve lidar com a reportagem policial e com a cobertura de hospitais, pronto-socorros e necrotérios. Segundo ele, "a conduta da reportagem policial revela o caráter do jornalista e a emoção dos fatos ajuda-o a construir seu texto pessoal, ao exigir o equilíbrio entre a emoção e a verdade. Na reportagem de polícia, o jornalista faz, e para toda a vida, sua opção ética e política. Fica de um lado ou do outro da sociedade. Com a reivindicação de justiça ou na cumplicidade com o poder do dinheiro". Santayana diz que "um jornalista sofre com o mundo quando leva seu ofício a sério". Lembra que todos nós temos uma posição diante do mundo associada a nossa identidade essencial.
Por fim, aconselha: "Se você não conseguir ter uma visão muito clara da situação e não tiver tempo para investigar a fundo, fique com a parte mais débil. A injustiça contra o forte, mesmo que seja detestável, como toda injustiça, é melhor do que a injustiça contra o fraco. O forte consegue restabelecer a verdade e recuperar a credibilidade. O pobre, ao perder a reputação, desgraça-se para sempre."
Ricardo Kotscho tem a convicção de que "repórter é repórter em qualquer lugar, não importam as circunstâncias, os veículos, os tempos históricos. Tem de estar preparado para escrever sobre qualquer assunto, em qualquer lugar, a qualquer hora". Para ele o trabalho terá resultado tanto melhor se o repórter perguntar sempre, não desistir nunca, tiver a humildade de reconhecer que não domina todos os assuntos e disposição para descobrir o que, afinal, está acontecendo. Se der sorte de estar no lugar certo, na hora certa, então, melhor ainda.
Kotscho é um dos que criticam a falta de apoio das empresas, hoje, à grande reportagem, saudoso dos anos 60, quando, com o surgimento do Novo Jornalismo no Brasil, "o repórter era o coração e o pulmão de qualquer veículo".
Grandes jornalistas vêem na empresa atual a preocupação única de um bom saldo bancário, privilegiando o "marketing de guerrilha", que acaba transformando os repórteres em meros coadjutores no bazar ambulante do jornal atual, cheio de quinquilharias para atrair o cliente. Enciclopédias, livros, discos e até sementes são distribuídos aos leitores, quando bastaria um jornalismo mais investigativo, mais interpretativo, mais voltado à prestação de serviço para resultados muito melhores.
Tudo isso justifica e valoriza a importância da reportagem no jornal impresso. Daí a responsabilidade de quem se põe a produzi-la.
(*) Professor de Jornalismo da Unesp-Bauru, SP
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