REALITY SHOWS
"Justiceiros dos ?reality shows?", copyright Jornal do Brasil, 12/05/02
"As análises sobre a relação entre a mídia e a Justiça estão contaminadas pelo conceito tradicional de cultura jurídica que, calcado nas instituições oficiais, não contempla a noção de ?justo? exposta pelo cidadão comum no cotidiano de mazelas apresentado nos programas populares de TV. Com essa abordagem ousada, o advogado Vicente Riccio deu o pontapé inicial em sua tese de doutorado em Sociologia, que faz no Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro (Iuperj). A primeira parte do trabalho, que trata dessa avaliação conceitual do que é o Direito e de como ele é exercido pela mídia, foi publicada na Revista Dados, do Iuperj.
Agora, Riccio, de 29 anos, professor do Centro Universitário de Belo Horizonte, quer ouvir os telespectadores desse tipo de programa, que ele classifica como reality shows – afinal, assim como os Big brothers da vida, Ratinho, Celso Russomano e que tais põem na telinha gente anônima que conta para milhões de pessoas seus problemas mais íntimos. E, mesmo que haja resultados específicos – como no caso gritante da prisão do pediatra paulista Eugenio Chipkevitch, depois de Ratinho mostrar no ar as horripilantes cenas de um vídeo com seus atos de pedofilia -, há que se perguntar se é essa a justiça que a sociedade quer. ?O que é o estado de direito numa sociedade de comunicação de massa??, questiona Riccio, na entrevista a seguir.
– Por que o senhor se interessou em pesquisar os reality shows?
– Meu interesse pela televisão de realidade começou com a figuração do crime na televisão, o jornalismo policial e essa forma de expressão televisiva que lidava com a questão da Justiça. A partir de 1998, houve, em especial nos Estados Unidos, a explosão de reality shows e eu comecei a pesquisar sobre o tema nesse tipo novo de programa.
– E por que investigar a questão da Justiça nos reality shows?
– São programas que trazem a pessoa que morre na fila do hospital, tem o depoimento de um parente, aquela situação dramática. Isso mexe com uma situação de Justiça: o direito à saúde não foi respeitado. É possível trabalhar com a questão do crime, dos excessos da mídia. Sempre tive interesse por essa perspectiva. Sou graduado em Direito e procuro estudar as relações entre o Direito e a mídia. Hoje, o Direito é chamado a lidar com áreas indeterminadas, que ele dificilmente regularia. O que é direito à vida, com a clonagem? O que é a livre expressão de idéias numa sociedade que depende de comunicação de massa? Uma sociedade complexa como a nossa precisa rediscutir constantemente seus fundamentos.
– O senhor pretende tratar, em sua pesquisa, de programas como Big brother Brasil e Casa dos artistas?
– Vou trabalhar somente com os reality shows que discutam o que eu chamo de Justiça ou temas correlatos: crime, assistência social, defesa do consumidor. Seguramente, vou trabalhar com o Programa do Ratinho. É um material interessante e ele inaugura, talvez, essa maior ênfase no individual da TV brasileira. É também um programa diferente dos demais desse estilo em outros lugares do planeta. Primeiro porque não é sobre crime. O tema aparece, mas aparece também o que chamo de inaplicabilidade das normas programáticas, ou seja, o Estado que não presta a devida assistência a seus cidadãos. Aparecem também questões de sociedade. É um programa que, de certa maneira, sintetiza diversos tipos de situações que aparecem nos programas de realidade. Mas devo estudar também o Linha direta, da TV Globo e, na Rede TV, há também o quadro de defesa do consumidor do Celso Russomano, que vai com a pessoa queixosa à loja, como se fosse um Procon midiático.
– O Programa do Ratinho enquadra-se na categoria de reality show?
– A característica da televisão de realidade está no conteúdo, feito por pessoas comuns, fatos reais, depoimentos individuais. Essa característica cabe em diversos tipo de programas, mas também apresenta muitas especificidades. Por exemplo, um reality show que trata de questões de família traz depoimentos pessoais, problemas do cotidiano, pessoas que sofrem expondo sua experiência. Um programa que trata de reconstituição de crimes faz a reconstituição de problemas individuais e permite que pessoas comuns se expressem no espaço televisivo. Existe uma característica comum, mas existem diversos subgêneros desse gênero maior que é o show de realidade.
– A primeira parte de sua tese foi publicada na Revista Dados, do Iuperj. Do que trata o trabalho?
– Eu questiono quais os conceitos necessários para se explicar um reality show que tenha por objeto a Justiça. Fui pesquisar a literatura sobre a subjetividade da Justiça e a que trata sobre esse tipo de programa. A conclusão inicial a que chego é que não há como estabelecer um padrão geral sobre o Direito e a mídia. É uma situação plural, que vai variar de acordo com o formato do programa. O que é a exposição de um crime hediondo e o que é a exposição de um crime de menor potencial ofensivo? Acho que é necessário estudar de forma diferenciada um reality show sobre o justo e um sobre questões de família, ou de entretenimento, como Casa dos artistas e Big brother.
– Vamos pegar um caso específico e bem recente: o vídeo exibido no Programa do Ratinho mostrando o pediatra Eugenio Chipkevitch em práticas pedófilas com seus pacientes. Foram cenas chocantes, mas, a partir disso, ele foi preso. Até que ponto foi feita a justiça?
– Esse caso é importante porque revela um problema intrínseco dessa relação do Direito com a mídia. As instituições legais trabalham com ênfase no contraditório. A mídia trabalha com a lógica da instantaneidade. O que é uma denúncia? É uma exposição de uma situação que choca o sentimento básico de justiça que as pessoas têm. É a sensação que tivemos quando vimos aquelas cenas deploráveis do médico abusando daquelas crianças não só fisicamente, mas na sua honra. Ao mesmo tempo, nós temos no outro canto do mundo uma situação de guerra, e esses atos de violência chegam ao nosso ambiente doméstico. É difícil ter um controle sobre isso. Será sempre uma relação de aproximação e estranhamento, que vai variar contextualmente.
– Mas, no caso do pediatra, se a exibição de seus atos pode ser tão repugnante quanto a de um palestino se explodindo no centro de Jerusalém, houve um resultado interessante em termos de justiça, ainda que se possa discutir legalmente o uso dessa imagem.
– A mídia é extremamente importante para denunciar situações de abuso, para controlar a ação do Estado, a ação do poder. O Judiciário é fundamental também. O que talvez deva ser melhor compreendido, antes de se dar uma resposta definitiva sobre essa questão, é como se dá essa relação entre essas duas instituições, qual é a reação do público, como os profissionais dessas duas instâncias democráticas percebem esse fenômeno. De certa maneira, é isso que estou tentando fazer.
– O problema é que casos como esse do Ratinho incentivam a atitudes como ?ah, agora vou filmar meu vizinho batendo no cachorro e mandar para o Ratinho, em vez de ir na delegacia, porque lá na TV é que as coisas são resolvidas?. Isso não é uma distorção do estado de direito?
– Devemos pensar o que é o estado de direito numa sociedade em que a comunicação de massa exerce um papel fundamental na vida cotidiana das pessoas. Há uma discussão sobre eficácia, vista aí como um resultado benéfico para todos, e a forma de se chegar a esse resultado. É a velha discussão entre o procedimento e o conteúdo. Numa sociedade com comunicação de massa em alta escala, essa fronteira entre procedimento e conteúdo fica muito tênue.
– Mas em qualquer situação, quando há a intervenção da mídia na figura de um apresentador, que vai tomar satisfação com um dono de loja ou expressar a queixa de uma pessoa, acontece uma pressão muito grande contra o acusado.
– Claro, a mídia é muito poderosa. Mas eu quero analisar é como o público e os profissionais da mídia interpretam esse tipo de situação. Todos nós temos uma idéia do que é justo. O sujeito parado ali na esquina pode não saber nada sobre DNA, mas tem noção de justiça.
– Fala-se que os reality shows de entrenimento são uma invasão da privacidade às avessas, ou seja, os telespectadores se sentem invadidos pelo convívio com aquelas pessoas, vendo-as ir ao banheiro ou tirar meleca. O que o senhor acha disso?
– Essa pergunta remete ao debate sobre a qualidade da programação, o gosto popular e qual o grau de autonomia do espectador para decidir o que lhe convém. É uma categoria muito difícil de definir, essa a do chamado gosto duvidoso. Há sempre o argumento de que, quem não quiser assistir, é só desligar a TV ou mudar de canal. Mas há os que dizem que a televisão é uma concessão pública, deve se guiar por parâmetros públicos e não exclusivamente individuais. Ainda mais num país em que a TV aberta é que atinge a maioria da população. Se essa questão chegar aos tribunais, estará em aberto."
"?Osbournes? edita seriados à la videoclipe", copyright Folha de S. Paulo, 9/05/02
"Enquanto o décimo e último episódio da primeira temporada de ?Os Osbournes? foi ao ar na última terça-feira na MTV norte-americana, o primeiro episódio do seriado-realidade estreou na irmã brasileira da emissora.
O interesse de ?Os Osbournes? está em revelar ?de verdade? o que acontece no seio de uma família de classe média alta, cujo pai, Ozzy Osbourne, fez fama como roqueiro rebelde nos anos 70. O tom é irônico. Décadas depois, longe do contexto paz e amor, em um mundo marcado pelo neoliberalismo, pela guerra, mas ainda ligado no rock e nos ideais de ?aprender a amar e a esquecer o ódio?, como afirma a letra da canção de Osbourne que serve de tema ao seriado, o astro vai envelhecendo no seio de uma família feliz, um tanto ?excêntrica?, mas, no essencial, ?normal?.
O conteúdo de ?Os Osbournes? não difere muito de seriados antigos como ?I Love Lucy? ou ?Cosby Show?, em versão moderna com edição à la videoclipe. Talvez o novo seriado possa ser mais bem definido como uma versão contemporânea e ?real? de ?A Família Adams?. A ambiguidade ficção/documentário acentua a ironia e estimula a repercussão.
O primeiro episódio mostra o núcleo da família Osbourne, composta do pai astro do rock, visual rebelde dos anos 60, a mãe, Sharon, ativa empresária do marido, superpotente dona-de-casa e companheira, o filho Jack, adolescente entediado, avesso a modas, e Kelly, a filha de 17 anos, de cabelos vermelhos espetados.
Os personagens de si mesmos são excêntricos nos trajes e em certos hábitos -como a coleção de gatos e cachorros que fazem cocô e xixi pela casa inteira, tema do segundo episódio. Mas são ?normais? nas relações familiares. A família, afinal de contas, permanece unida, em tempos em que separações dão a tônica.
O astro do rock é um pai dedicado e preocupado, ?o melhor pai do mundo?. Recomenda que os filhos não usem drogas. Permanece apaixonado pela mulher, que beija ternamente na saída de uma entrevista. Os dois confessam, bem-humorados, que não têm mais o mesmo fogo sexual.
Segundo o ?New York Times?, entre 5 de março e 30 de abril, em média, 8 milhões de pessoas assistiram ao programa, que ficou em primeiro lugar na TV a cabo.
?Os Osbournes? obteve os maiores índices de audiência no segmento do público mais cobiçado do mercado publicitário: os jovens. O sucesso se converte em cifras. As negociações entre a MTV e a família Osbourne para a realização de mais uma temporada do seriado envolvem quantias inéditas para o canal.
A repercussão extrapola o mercado. A atenção da mídia levou o astro do rock à interlocução inusitada com o presidente Bush durante um almoço recente com a imprensa na Casa Branca. E o formato documentário do cotidiano, com edição sintética do material e de acordo com regras da dramaturgia televisiva, coloca questões sobre noções convencionais que regem o reino do audiovisual.
O gênero ?reality show? vai se diversificando. Há formatos mais ou menos perniciosos, que vão do sensacionalismo dos canais populistas da TV aberta à videoarte restrita a salas da Bienal, em geral, em torno de exibições pouco roteirizadas. Gincanas românticas, provações escatológicas, experimentos com humanos e relatos do cotidiano da classe média constituem um conjunto disforme de programas, cujo formato, para o bem ou para o mal, checa paradigmas estabelecidos. Nesse contexto, ?Os Osbournes? é dos mais engraçadinhos."
"Heróis na galeria de Simpsons e Flintstones", copyright O Globo, 8/05/02
"?Não sou o tipo de pessoa que você pensa que sou/Não sou o anticristo nem o homem de ferro?. Os primeiros versos de ?Gets me through?, música de abertura do último disco de Ozzy Osbourne, ?Down to Earth?, servem também para abrir o primeiro capítulo da minissérie ?Os Osbournes?, que estreou na MTV terça-feira, no tardio horário das 23h30m. Na tela, o roqueiro cinqüentão Ozzy Osbourne, sua mulher, Sharon, os filhos adolescentes, Jack e Kelly, empregados, cães e gatos em Beverly Hills, na Califórnia: um reality show de verdade, em que os participantes se conhecem, moram juntos e não precisam se vestir de mexicanos uma vez por semana.
O programa tem uma programação visual retrô, tirada dos anos 60 e 70, e uma boa versão do sucesso ?Crazy train?, de Ozzy, em levada easy-listening . O grande número e a longa duração dos intervalos, num programa de meia hora, cansam o espectador.
Ozzy, com sua fala mole – mistura dos anos de alcoolismo com a origem no brejo inglês de Birmingham – e olhos arregalados, é um personagem delicioso: é engraçado quando quer e quando não quer.
Apesar de, a princípio, a família parecer que é composta de malucos, muito da graça do programa vem exatamente do contrário: afora alguns detalhes, os Osbournes são pessoas normais. Pessoas normais cheias da grana, é claro.
Ozzy constrange os filhos com recomendações
No geral, os coloridos Jack e Kelly – ela é mais velha, tem 17 anos e já dirige; ele tem 16 – são um casal de irmãos como qualquer outro: brigam, brincam, trocam farpas e saem juntos. Um motorista os leva a uma boate onde toca rock, não sem antes Ozzy se encarregar das recomendações:
– Não bebam, não usem drogas e, se fizerem sexo, usem camisinha – diz o pai, constrangendo os filhos.
Ozzy e Sharon, aliás, são bem mais liberais do que a média dos pais americanos, até porque são ingleses. A matriarca, temida no mundo do rock por mandar e desmandar na vida do marido – a sobrevivência artística e física de Ozzy, após as doideiras dos anos 70 e 80, é atribuída a ela – não chega a fazer o estilo general. Até as broncas e os conselhos aos filhos são divididos pelos dois. A diferença é que Ozzy é bem mais engraçado: em determinado momento, diz que ama os filhos mais do que a vida, embora eles sejam loucos; mais tarde, lembra a Kelly que passou 35 anos exposto a 50 milhões de decibéis, então não ouve bem.
– Se quiser falar comigo, escreva-me um bilhete – diz.
Em suma, Ozzy e família são simpáticos e engraçados, assim como já foram os Flintstones, os Simpsons e os Jetsons. E é aí que está a graça."