
(Foto: Negative Space/Pexels)
O jornalismo se apropriou de inovações tecnológicas que potencializaram a comunicação ao longo da história, a ponto de se tornar quase sinônimo de algumas delas, como a imprensa, o rádio e a TV. Nesses meios, as audiências encontraram ambientes seguros e confiáveis porque o bom jornalismo é preciso, transparente e adota padrões éticos reconhecidos. No ambiente digital, no entanto, tem sido diferente.
Incapaz de estabelecer um protagonismo nesse ambiente, o jornalismo enfrenta uma crise existencial. O meio digital, fragmentado e profundamente deteriorado pelo aumento exponencial da desinformação, do extremismo e dos discursos de ódio, testa a relevância e a resiliência da imprensa. No ambiente digital, a desinformação não é apenas um ruído de fundo. Ela é o motor que acelera um desarranjo informacional em escala jamais vista e constitui uma ameaça global que manipula a opinião pública, destrói a confiança nas transações e nas instituições e corrói a democracia.
Nesse cenário, potencializado pela recente ascensão da inteligência artificial generativa, o jornalismo precisa ampliar seus limites para além da mera reportagem de fatos. É impositivo ao jornalismo atuar ativamente como guardião da integridade do ambiente digital, apontando caminhos para uma jornada digital mais segura. E, se possível, transformar essa crise em uma oportunidade de reconstruir os laços de confiança com os cidadãos.
Para zelar pela integridade digital, o jornalismo deve assumir um papel fundamental de garantidor da veracidade dos fatos e da integridade das informações. E usar táticas avançadas.
O fact-checking tradicional elevou os padrões de transparência e demonstrou a importância da metodologia na produção do conteúdo jornalístico. Mas, embora essencial para desmascarar falsidades, é uma intervenção apenas reativa. A inovação essencial no combate à desinformação está na prevenção, ou seja, em intervenções proativas que aportem mais contexto e funcionem como vacinas para impedir a propagação de informações falsas.
A intervenção proativa desenvolve resiliência cognitiva e capacita os cidadãos a identificar e rejeitar futuras tentativas de manipulação. Essa abordagem parece ser mais eficaz no longo prazo e tem potencial para reduzir os efeitos da desinformação e o compartilhamento de conteúdos inautênticos.
O jornalismo que se antecipa e está conectado às audiências oferece contexto para desmontar teorias conspiratórias e foca em explicar os acontecimentos e as táticas de manipulação usadas por influenciadores maliciosos. No Comprova, analisamos 22 diferentes táticas utilizadas por agentes maliciosos para persuadir e provocar nas pessoas reações imediatas que ativem algoritmos que desencadeiem a rápida disseminação de conteúdos sintéticos, tóxicos ou desinformativos. Elas têm servido para mostrar aos leitores o quão convincentes podem ser essas peças de desinformação.
O zelo pela integridade da informação exige também do jornalismo que deixe mais clara a intencionalidade dos atores e o interesse das fontes, e que jamais admita, em nome da objetividade, um falso equilíbrio entre atores ou fontes que não se equivalem. Equiparar fatos de pesos diferentes, como, por exemplo, colocar o negacionismo climático no mesmo patamar do consenso científico, representa, na prática, um incentivo à desinformação.
O desarranjo informacional nas redes e a insegurança quanto à confiabilidade dos conteúdos e das transações nos meios digitais também representam uma oportunidade para o jornalismo reconquistar a confiança do público. O bom jornalismo é vacina, mas também é remédio. Essa reconstrução dos laços de confiança exige empatia e transparência radical. Jornalistas e meios de comunicação devem assumir compromissos com seus públicos e declarar abertamente seus princípios, métodos, como se relacionam com suas fontes e, principalmente, como se financiam.
Zelar pela integridade digital não é apenas reduzir os níveis de desinformação, mas também construir um ambiente informativo mais saudável. A mesma IA que potencializa a desinformação pode ser uma ferramenta para a solução.
Os novos hábitos adquiridos com o uso das IAs também influenciarão nossa relação com as notícias, transformando o ato de se informar em uma experiência conversacional e interativa, adaptada aos contextos de cada leitor.
Um ambiente íntegro é também um ambiente acessível. A IA será usada para facilitar o acesso à informação para pessoas com deficiência.
O papel do jornalismo na integridade do ambiente digital é o de um verificador rigoroso, capaz de construir comunidades, que usa a transparência e a conexão local para criar e manter elos de confiança com seus públicos. O jornalismo precisa ser visto como um serviço essencial, compreensível e acessível, cujo valor seja reconhecido em um mundo que busca integridade e clareza de origem e que precisa urgentemente distinguir o que é autêntico do que é conteúdo desinformativo e manipulador.
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Sérgio Lüdtke é editor-chefe do Projeto Comprova, presidente do Projor e coordenador do Atlas da Notícia.
