Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Textos performativos e a simulação do trabalho cognitivo

Qualquer acadêmico logicamente disciplinado já deparou com os malabaristas das palavras. São aquelas pessoas que escrevem longos e belos parágrafos, mas sem significado algum. No ambiente acadêmico, muitos conseguem realizar a proeza de escrever teses e dissertações inteiras desprovidas de valor cognitivo. A intenção desses autores é impressionar o leitor, escrever um texto bonito, estiloso, que soe bem. Dão mais importância à forma do texto do que ao conteúdo. Isto parece legítimo em muitos casos. Mas certamente não o é quando o interesse em questão é primariamente cognitivo. Alguns autores simulam tratar de um tema cognitivamente interessante, quando na realidade estão apenas a brincar com as palavras. Esses são os textos performativos.

Nosso uso da expressão “texto performativo” é semelhante em algum aspecto ao uso que o filósofo J. L. Austin (1911-1960) fez de “frase performativa”. Austin traçou uma importante distinção entre o que chamou de frases “constativas” (ou seja, frases descritivas, passíveis de valor de verdade) e o que chamou de frases “performativas”. “A neve é branca” é um exemplo de frase constativa, pois, por ser uma frase verdadeira, tem valor de verdade. Considere em contrapartida a frase “Prometo-te pagar o empréstimo”. Embora esta última tenha a aparência gramatical de uma frase declarativa indicativa, ela não pode ser considerada assertoricamente. Quando proferimos uma frase como “prometo-te pagar o empréstimo”, não pretendemos transmitir alguma afirmação factual sobre nós, mas apenas prometer algo. Prometer pagar o empréstimo é precisamente dizer “prometo pagar o empréstimo”. Este é um fenômeno curioso, pois estamos fazendo coisas com palavras.

Assim como as frases performativas têm a aparência gramatical de uma frase declarativa indicativa, os textos performativos têm a aparência de ter valor cognitivo. Apesar da aparência de superfície, esses textos de fato não são assim. Eles simulam defender uma tese com valor de verdade, mas não podem ser avaliados quanto à sua verdade ou falsidade. Esses textos nada mais são do que uma performance do autor, que procura impressionar o leitor com uma série de parágrafos desprovidos de valor cognitivo, mas que, por vezes, possuem valor estético. O verbo “conhecer”, como é comum dizer, é factivo, isto é, a oração a ele encaixada representa algo como um fato. “Saber que o céu é azul” implica que o céu seja azul. No entanto, quando se escreve um texto performativo, do mesmo modo quando se profere uma frase performativa, não se pretende transmitir nenhuma informação factual.

Erro grosseiro

O que dissemos acima foi algo muito genérico. Infelizmente não temos um esquema para mostrar o que conta e o que não conta como um texto performativo. Assim,sentimo-nos compelidos a usar algum texto como exemplo. Optamos por tratar do artigo “A ética na veia velha do jornalismo”, de Edison Veiga, publicado neste observatório há algum tempo. O que queremos mostrar é que o artigo do senhor Veiga enquadra-se muito bem na descrição que fizemos acima e é um ótimo exemplo de como se faz para simular um trabalho com fins cognitivos, mas que na verdade é meramente performático. Em outras palavras, queremos mostrarque o texto supracitado é um caso paradigmático do que pode contar como um texto performativo.

Esta é uma tarefa difícil. Acredito que o caminho mais fácil a ser tomado é mostrar que a maior parte de suas frases é destituída de valor de verdade, isto é, não podem ser verdadeiras nem falsas. Como a verdade é uma condição necessária para haver conhecimento, muitas das frases do artigo são desprovidas de conteúdo cognitivo. Falamos apenas da maior parte das frases. As poucas frases restantes, que têm valor de verdade, são falsidades ou truísmos óbvios. Seja como for, o artigo é cognitivamente desinteressante. Apontar todos esses aspectos do artigo seria demasiado tedioso, por isso nos limitaremos a considerar apenas alguns parágrafos. Comecemos pelo primeiro:

Nestes cruéis porém cruciais tempos de pós-pós-modernidade, ou seja lá que nome se dão aos bois, aos dois, aos pois e aos pós, muitos são os que advogam pelo fim da ética. Aqueles que privilegiam a estética ainda podem ter um tanto de razão (nunca nos esquecendo que toda estética contém a ética dentro de si); entretanto, os que argumentam que, se não existe verdade universal, tudo é possível, podem estar prestes a cair em grosseiro erro.

Não é um argumento, mas uma condicional

Repare o leitor na primeira frase. O que o autor quer dizer com “difíceis porém cruciais tempos de pós-pós-modernidade”? Em primeiro lugar, o termo “pós-modernidade” já é pouquíssimo claro e muitos pensadores são incapazes de defini-lo explicitamente. Se “pós-modernidade” já é um termo dificílimo de definir de maneira bem-sucedida, e assim um excelente candidato a um termo obscuro, “pós-pós-modernidade” o é em dobro. Ainda mais difícil é entender o que significa a expressão “tempos cruéis porém cruciais”. A rigor, é um erro categorial – um erro que consiste em apresentar uma coisa de um tipo como se fosse de outro tipo – dizer que um tempo é cruel: algumas ações certamente são cruéis, mas um determinado tempo histórico certamente não. Essa expressão é análoga ao exemplo de Chomsky: “as ideias verdes dormem furiosamente”. Ideias não podem ser verdes, não podem dormir. Tempos não podem ser cruéis. Um texto com fins cognitivos visa à precisão. As expressões aqui citadas são exemplos claros de imprecisão. Depois disso, temos uma expressão cômica: “ou seja lá que nome se dão aos bois, aos dois, aos pois e aos pós”. Não obstante o seu tom lúdico, do ponto de vista cognitivo é completamente desnecessário dizer algo assim. Finalmente, após todo esse non sense, uma parte um pouco mais inteligível, a saber, “muitos são os que advogam pelo fim da ética”. O que significa “o fim da ética”? A ética é uma disciplina filosófica. Tanto quanto sabemos, nenhum profissional da área propusera o fim da disciplina. Talvez o autor tenha pensado que alguns filósofos defendem que não há ações moralmente boas. Se fosse apenas isto, a primeira frase poderia ser traduzida, em linguagem civilizada, pelo seguinte: “alguns filósofos pensam que não há ações moralmente boas”. Mas esta é uma banalidade que qualquer estudante de filosofia do primeiro ano conhece.

Agora, uma frase que aparece em seguida: “toda estética contém a ética dentro de si”. O que quer isto dizer? A única interpretação razoável que se poderia fazer dela é que a disciplina filosófica referida pelo termo “estética” inclui outra disciplina, a ética. Mas isto é obviamente falso. Estas duas disciplinas tratam de problemas radicalmente distintos. Só para dar um exemplo: um dos problemas centrais da estética, que é o de oferecer uma definição bem-sucedida do conceito de arte nada tem a ver com o problema de saber se o aborto é eticamente permissível. Há apenas duas interpretações possíveis: ou a frase é destituída de sentido ou é uma falsidade óbvia. Seja como for, é cognitivamente desinteressante.

Logo em seguida, o autor afirma: “os que argumentam que, se não existe verdade universal, tudo é possível, podem estar prestes a cair em grosseiro erro.” O problema é que “Se não existe verdade universal, tudo é possível” não é um argumento, mas uma condicional. O autor usou indisciplinadamente um conceito técnico da lógica, afirmando erroneamente que uma frase condicional é um argumento. É um erro categorial similar ao erro de “as ideias verdes dormem furiosamente juntas”.

Característica de um texto performativo

Não faremos comentários exaustivos sobre a ingenuidade do autor acerca da filosofia, mas esta frase merece ser apreciada: “Não existe verdade única e irrefutável, isto é certo e filosoficamente reconhecido”. Há dois erros aqui. Em primeiro lugar, dizer que não existe verdade única é uma trivialidade sem paralelo. Que dois e dois são quatro e que estou escrevendo este texto agora são duas frases verdadeiras. O que o autor pode ter querido dizer é que não existe apenas uma verdade com relação a um dado assunto. Mas se ele admite que não existe verdade única e irrefutável, como quer persuadir o leitor de que isto é verdade? Em segundo lugar, ao contrário do que pensa Veiga, não existem verdades refutáveis. Por exemplo: se é verdade que existem extraterrestres tal afirmação não pode ser refutada. É claro que podemos descobrir que não há extraterrestres e que estávamos enganados ao pensar que havia. Mas isto não consiste na refutação de uma verdade. Ocorre apenas que estávamos enganados acerca do que pensávamos ser verdade, o que não é de modo algum surpreendente para seres falíveis e limitados como nós.

Para terminar, pedimos que o leitor compare os dois seguintes parágrafos:

O cuidado em identificar pontos críticos na necessidade de renovação processual oferece uma interessante oportunidade para verificação dos modos de operação convencionais. Por conseguinte, a hegemonia do ambiente político é uma das consequências dos procedimentos normalmente adotados [http://suicidiovirtual.net/dados/lerolero.html].

Já o jornalista ideal, jornalista mesmo, para nós tem de ser um jornalirista: sua ética cabe em sua estética e sua estética está comprometida com a construção diuturna de um devir aqui chamado de nova nave do jornalirismo.

Há poucas diferenças entre esses parágrafos. A primeira delas é a de que o primeiro foi retirado da página do gerador de lero-lero,enquanto queo segundo foi retirado do artigo que estamos a mencionar. A segunda diferença é que o artigo de Edison Veiga soa bonito, estiloso etc. Você se lembra da frase “Nestes cruéis porém cruciais tempos de pós-pós-modernidade, ou seja lá que nome se dão aos bois, aos dois, aos pois e aos pós, muitos são os que advogam pelo fim da ética”? Essa frase é até ritmada! A superioridade do artigo de Veiga sobre o gerador de lero-lero é que o primeiro é um artigo performativo, enquanto que o segundo não.

Esta talvez seja a principal característica de um texto performativo: um texto feito para soar bem, suscitar emoções, agradar ao público etc., mas que é incapaz de expressar quaisquer ideias cognitivamente interessantes. Deixamos ao leitor a tarefa de avaliar se este artigo é cognitivamente interessante ou apenas performativo.

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[Pedro Merlussi e Rafael d’Aversa são estudantes da pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina]