Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘Prestige papers’ disputam prestígio impresso e digital

A revolução digital na mídia impressa vem provocando uma ciranda de leitores do mundo analógico para o mundo digital no Brasil, a exemplo do que já acontece nos principais centros sociais e econômicos da América e da Europa. A cada dia que passa, os jornais brasileiros perdem os tradicionais leitores de informação em papel e ganham dezenas de novos leitores de informação em telas digitais, por meio de desktops, tablets, smartphones, netbooks ou por qualquer outro tipo de aparelho eletrônico com acesso ao universo virtual.

Dois dos principais prestige papers do Brasil, a Folha de S.Paulo e o Estado de S. Paulo, anunciaram, nos últimos dias, dados que demonstram, segundo eles próprios, a liderança na visibilidade (circulação e audiência) entre o público tradicional analógico e o universo de usuários do mundo digital. Um (a Folha) seria líder no mundo impresso e digital e o outro (o Estadão) seria líder no mundo digital.

A disputa pela liderança

Em letras garrafais, a Folha de S.Paulo anunciou, dia 29 de junho de 2014, a “liderança em circulação e audiência em diferentes plataformas”, de acordo com números do Instituto Verificador de Circulação (IVC). Dados indicariam que a publicação mantém uma venda média diária no país de 342 mil exemplares (incluindo as edições “impressa e digital”), um número que representa ser (na versão da Folha) 6% maior que a venda média diária de O Globo e 41% maior do que a do Estadão. Este número revelaria ainda um crescimento 13% superior ao mesmo mês de 2013.

Ao mesmo tempo, o balanço da Folha afirma deter o site de notícias mais lido do país, com 25,9 milhões de ‘usuários de informação’ em maio/2014 e ser o jornal digital com maior circulação diária, com 125 mil “consumidores”. O título da auto-reportagem é sugestivo: “Folha mantém liderança de circulação no país, mostra IVC”.

Duas semanas depois da “reportagem/publicidade” da Folha, foi a vez do Estadão apresentar seus números, numa clara resposta ao concorrente (além de ser uma espécie de “satisfação” aos leitores de SP e do país). Dados apresentados pela empresa dão conta que o site do Estadão alcançou recorde de audiência no dia 9 de julho, com um total de 6,1 milhões de pageviews (visualização de uma página na web), alcançando 1,8 milhão de usuários únicos. Isto significaria, segundo a empresa, que naquele dia (um feriado) o Estadão teria atingido 6% da sua “média” total mensal.

A média mensal mais recente do Estadão (aferida, segundo a empresa, pela ferramenta Google Analytics) seria de 111,4 milhões de pageviews, além de 14,4 milhões de usuários únicos. O levantamento da empresa mostrava ainda que o estadão.com.br havia batido (segundo ele) “recorde” de visitantes únicos em maio – 15 milhões –, um número 42% maior do maio de 2013 e 3% maior do que abril de 2014. O título da auto-reportagem do jornal era: “Site do Estadão bate recorde de visualizações”.

A reportagem/publicidade de O Estado de S. Paulo não citou o nome de nenhum dos concorrentes impressos ou digitais, nem revelou o suposto ranking dos competidores dos visitantes únicos a sites de jornais (ou de notícias, ou de informações, etc.).

Os dados, os fatos e os números

Se nos abstrairmos da queda-de-braço dos Departamentos de Marketing das duas organizações jornalísticas, e os esforços para mostrar um suposto poder de fogo informativo perante a sociedade letrada, a grande verdade da mídia impressa no Brasil está no fato de que a ciranda de leitores vive um estado intenso de ebulição, com a circulação dos “consumidores da informação” entre as diversas plataformas virtuais, além da evidente debandada dos “leitores tradicionais” (do mundo do papel) para o mundo digital.

Vejamos de perto os números. Antes do balanço de junho, a Folha anunciava em reportagem/publicidade no dia 30 de março de 2014 uma circulação média de 341 mil exemplares, sendo 117 mil no formato digital. Isto representaria, em qualquer sistema matemático, o mesmo número global da estatística do dia 29 de junho de 2014, fato que, evidenciaria, portanto, preferencialmente, um quadro (do ponto de vista estatístico e econômico) de “estagnação” do número total de usuários. A diferença real, à prova de qualquer suspeita, está assim no fato de que o jornal mostra o avanço no número de usuários digitais de informação (125 mil em maio contra 117 mil em março), o que significaria, pela lógica, uma queda real no número de usuários da versão impressa.

Um dado que exemplifica esta questão está na afirmação da Folha, em 30 de março de 2014, de que seu concorrente direto em SP, o Estadão, tinha em média 233 mil edições diárias lidas (impresso e digital) e que em 29 de junho a média de circulação era de 227 mil edições diárias (impresso e digital).

A realidade dos fatos, dos dados e dos números é de que, em primeiro lugar, os leitores não estão desaparecendo no limbo da realidade analógica. A cada dia que passa, a realidade mostra que os leitores estão reformulando seus modos, suas práticas e suas rotinas de acessibilidade, de usabilidade e de audiência (única ou múltipla) das mídias analógicas (tradicionais) e das mídias digitais.

Isto dá continuidade, aliás, ao que já vinha acontecendo com o universo impresso diante da concorrência crescente dos meios analógicos (cinema, rádio e TV) desde o início do século 20. Cada nova tecnologia “abudziu” progressivamente os leitores dos jornais e revistas impressas, ativando a ciranda dos consumidores de informação, sem, entretanto, provocar o “colapso” imediato de nenhum dos meios de comunicação (como bem anotou o norte-americano Paul Lazarsfeld em meados do século 20, em sua Teoria do Todos ou Nenhum, que diz que “quem usa a mídia ou usa todas ou não usa nenhuma”, corroborada pelos enunciados de Marshall McLuhan nos anos 60 e 70, que sempre repetia o fato de que “cada nova tecnologia incorpora e remodela a tecnologia anterior”).

É notório, portanto, que ninguém abandonou o universo da comunicação e da informação. Ao contrário. O ser humano continua sendo um consumidor voraz de todos os canais, processos e sistemas de comunicação e de informação e tem, inclusive, otimizado suas rotinas infocomunicacionais em razão da oferta exponencial das possibilidades tecnológicas na sociedade da informação e da comunicação.

Os leitores passaram a acessar a “informação” pelos mais diferentes caminhos digitais e virtuais e estão, inclusive, “complexificando” seus hábitos de consumo. As pessoas podem “ler”, “acessar”, “consumir”, “compartilhar”, “participar”, “envolver-se”, “copiar” etc. todos os tipos de aparelhos tecnológicos, em qualquer lugar, em qualquer momento, das formas e das maneiras mais comuns ou inusitadas.

O fato é que os leitores estão sim acessando informação e utilizando as redes virtuais para se comunicar, de um modo muito mais intenso e invasivo do que as gerações anteriores, restritas à lógica das mídias convencionais (cinema, revista, livro, jornal, TV e rádio).

As novas estatísticas

O curioso neste cenário da sociedade da informação e da comunicação é a forma natural com que os jornais tratam de marquetizar sua tiragem, circulação, audiência ou consumo analógico ou digital, independentemente da realidade dos fatos, dos dados e dos números da sociedade da informação e da comunicação.

Em nome da sobrevivência, as empresas adaptaram-se rapidamente aos novos tempos, passando a estampar em suas edições diárias estatísticas sobre seu desempenho empresarial, esquecendo (ou fingindo esquecer) que há poucos dias eles, os jornais, não falavam (nem suspeitavam que iriam falar) de sua performance no mundo físico e no mundo virtual.

Voltemos alguns passos ao passado recente. Uma reportagem da revista IstoÉ, de 30 de janeiro de 2011, comemorava o fato de 2010 ter sido um ano extremamente positivo para a imprensa brasileira, com uma alta de 1,5% no volume de exemplares totais vendidos pelo conjunto de jornais do país. Dizia a reportagem que “entre os dez maiores títulos em circulação, a maior alta foi de O Estado de S. Paulo, que avançou 9% no ano, chegando à média anual de 236 mil exemplares”.

O título da matéria ostentava o fato de que o jornal “Estado tem maior expansão e consolida-se líder em SP”, além de revelar, para surpresa geral, na época, o detalhe de que, na circulação total, da versão impressa e da versão digital, aFolha tinha perdido sua liderança nacional para o jornal mineiro Super Notícia. A Folha tinha média anual de 294 mil exemplares e o jornal mineiro, 296 mil. (É verdade que a fonte da reportagem da IstoÉ era o Estadão.)

De maneira tímida, o universo digital, assim como o consumidor digital, já apareciam na reportagem interpretativa da revista. O lead da notícia, entretanto, ainda estava totalmente preso à lógica do universo material, real, analógico e impresso (como o próprio título da matéria atestava). Se voltarmos um pouco mais no tempo, veremos que os leads da década de 90 dos prestige papers brasileiros ou os artigos interpretativos sobre a situação da mídia já tratavam da “queda” da tiragem dos jornais e “ainda” não contemplavam o efeito das mídias digitais.

Em sua coluna semanal, o ombudsman da Folha, Marcelo Beraba, dizia em 13 de março de 2005, que “os jornais [brasileiros] venderam em 2003 uma média diária de 6,470 milhões de exemplares e, em 2004, 6,522 milhões. Se a comparação for com 2000, a queda é de 17%. Ou seja, a curva é decrescente, e ainda não é possível se afirmar que as vendas pararam de cair. A situação para os três grandes jornais [Folha, Estadão e O Globo] é ainda pior. Eles vêm caindo sem interrupção desde 1996. Em 1995, a Folha chegou a vender uma média diária de 606 mil exemplares. Terminou o ano passado [2004] com uma média de 308 mil. Como em 2003 tivera uma média de 315 mil exemplares diários, a queda em um ano foi de 2,3%”.

Enfim. Os dados, os fatos e os números dizem tudo, apesar dos esforços dos Departamentos de Marketing.

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Leandro Marshall é jornalista, escritor e professor