Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Sociólogo diz que força da internet é relativa

A internet global e massificadora da cultura dominante é uma ficção, acredita o jornalista e sociólogo francês Frédéric Martel. Em seu último livro, “Smart – Uma Pesquisa sobre Internets”, que deve chegar às livrarias brasileiras no primeiro semestre de 2015, Martel afirma que não existe uma internet unificada e que seu crescimento só aconteceu pela adaptação da rede às peculiaridades locais de cada recanto que o universo virtual alcança. Por isso, ele propõe a adoção do plural para indicar as diferentes formas que a internet toma em diferentes lugares. A popularização da vida digital também o leva a propor que a rede seja identificada como um substantivo comum, sem letra maiúscula, igual ao que se faz com o rádio e a televisão. A partir de observações recolhidas em mais de 50 países ao longo dos últimos quatro anos, Martel concluiu que a fragmentação e a regionalização são os traços fortes da internet.

Em 2010, Martel lançou “Mainstream: A Guerra Global das Mídias e das Culturas” (também pela Civilização Brasileira), que já mencionava o papel da internet na disseminação da indústria cultural. Best-seller na França, publicado em 20 países, o livro chamou a atenção do escritor peruano Mario Vargas Llosa, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura naquele ano. Llosa referiu-se à pesquisa de Martel em um ensaio sobre a mudança no panorama cultural da atualidade (“A Civilização do Espetáculo”, editora Objetiva). A caminho do Chile e do México, onde faria palestras sobre as mudanças sociais que analisa em seus livros, Martel passou pelo Rio de Janeiro há duas semanas, em sua “quinta ou sexta” visita ao Brasil. Perdeu a conta, de tantas vezes que esteve no país, envolvido em pesquisas ou entrevistas para o programa semanal que apresenta na Radio France. Ele falou ao Valor sobre a discussão de ideias com Vargas Llosa, a necessidade de proteger os usuários dos abusos cometidos pelas empresas que dominam a internet e a inclusão digital em países de economia emergente, que considera os principais articuladores das revoluções sociais da atualidade.

Alguns críticos afirmam que a internet ameaça a identidade cultural de cada povo, mas “Smart” conclui que é cada vez maior a regionalização da internet. Por quê?

Frédéric Martel – A fragmentação define mais a internet do que seu aspecto global. A maioria das pessoas está conectada em redes sociais com ex-colegas de colégio que não encontram desde a juventude. Não querem saber de fazer amizade com desconhecidos indianos, coreanos, russos, gente de outros países. O intercâmbio cultural é muito menor do que se imagina. O Facebook e o Google alardeiam que são globais, mas seu alcance só se tornou tão grande por causa de versões em idiomas específicos para cada país. Se as coisas andam bem na internet é por que existe uma Wikipedia para cada língua. A unificação de culturas não existirá enquanto cada grupo preferir utilizar seu idioma para se comunicar. Há resistência natural ao uso de um idioma universal. Nem todo mundo usa inglês para se comunicar. Na Índia, existem 500 dialetos, todos falados por diferentes grupos.

A internet não ajudaria, então, a quebrar barreiras culturais, a disseminar informações que ficariam restritas a seus países de origem?

F.M. – Para construir seu imenso alcance, a internet não dissemina cultura, ela reforça os valores locais. As barreiras físicas existem no mundo virtual. Países com governos totalitários conseguem impedir que a internet atravesse suas fronteiras simplesmente pela dificuldade de conexão. É assim em Cuba, onde a internet está presente, mas o sinal cai o tempo todo. Na China, não há Facebook nem Twitter, mas simulacros. Criaram redes sociais parecidíssimas com as de maior penetração no resto do mundo, só que estão ligadas, apenas e unicamente, ao território chinês. A censura filtra qualquer informação externa. Esses regimes fortíssimos conseguiram bloquear a abertura de suas fronteiras.

Para algumas pessoas, o mundo digital é o principal incentivador da cultura de massa, em detrimento do pensamento acadêmico. O que o senhor acha disso?

F.M. – Reações contrárias a novidades aconteceram em outros momentos de intensas transformações, na história da humanidade. A Revolução Industrial deve ter sido assustadora para muitos de sua época. A resistência à internet é típica das pessoas mais velhas. Participei de um debate com Vargas Llosa, que foi muito enfático ao reclamar do que seria a dissolução do que ele conheceu como civilização. Ele cresceu no mundo concreto, no mundo do papel, quando os eruditos eram respeitados, celebrados. Hoje, o mundo festeja a tecnologia mais do que os intelectuais. Essas pessoas, contemporâneas de Vargas Llosa, tão bem representadas por ele, criticam a internet como se ela fosse nociva por si só. De certo modo, compreendo que queiram proteger sua língua, sua cultura, seu modo de vida.

Enquanto muitos analistas de comunicação elogiam o compartilhamento de informações, outros lamentam a superficialidade do que é divulgado na rede. Qual é sua posição diante desse quadro?

F.M. – Não faço julgamentos sobre o que há de bom ou ruim na conectividade. Meus livros são fruto de pesquisa, sem qualquer posição ideológica, sem minha opinião. A internet não é boa nem má. Alguns intelectuais franceses desprezam a internet, que consideram apenas uma forma de entretenimento. Claro que há muita informação inútil. A rede pode servir para disseminar rancores, ódios. Mas também serve para o envolvimento cívico e social em torno de causas interessantes. Em minhas viagens por países emergentes, percebi, ao longo de anos, que a conexão digital é um instrumento de poder para os menos favorecidos. Os países emergentes experimentam mudanças sociais interessantes e inesperadas. O Uruguai e a África do Sul legalizaram os casamentos homossexuais antes da França, tradicional berço da revolução e dos direitos humanos. A internet também promove algumas mudanças, como a troca de papeis em países africanos, onde tradicionalmente os idosos transmitiam ensinamentos aos jovens. Hoje, as crianças estão ajudando os pais a navegar pela internet, o que trará, certamente, reflexos nas relações sociais.

A perda da privacidade dos usuários é o preço a pagar pela conectividade?

F.M. – O avanço tecnológico é irreversível. Em 5 anos, haverá cerca de 5 bilhões de pessoas conectadas, a imensa maioria através dos smartphones. Estamos vivendo a revolução “inteligente” (“smart”). Então, este é o momento de coibir a vulnerabilidade dos usuários, que precisam de proteção legal não só quanto à privacidade. Tudo indica que, apesar de negarem, os grandes conglomerados que hoje dominam a rede vão passar a cobrar pelo que oferecem. O Facebook, que se afirmava totalmente gratuito, já cobra para divulgar páginas pessoais. Por isso, é importantíssimo lutar pela regulação da internet em cada país, como o Brasil fez. Amazon, Google, Apple, entre outras companhias, não devem ter tanto poder e controle sobre os usuários. Milhões de pessoas não podem ser manipuladas pelas empresas que modificam circunstancialmente as regras que elas próprias inventaram.

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Olga de Mello, para o Valor Econômico