Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Chega de eufemismos

Num longo ensaio publicado seis meses atrás na revista “New Yorker”, o jornalista Adam Gopnik disserta sobre linguagem e eufemismos. O autor sustenta que é preciso coragem para eliminar o clichê e o eufemismo do nosso discurso, pois significa estarmos dispostos a chegar mais perto da verdade.

“Sempre que falamos de forma direta sobre algum tema que atrai camadas de mentiras estamos promovendo a sanidade da nação”, escreveu Gopnik. Ou, como dizia George Orwell, metáforas surradas não passam de uma sopa de palavras destituídas de qualquer poder evocativo, que servem de muleta ao orador sem imaginação ou àquele com algo a esconder.

De fato, como demonstrou o laborioso relatório final da Comissão Nacional da Verdade divulgado semana passada em Brasília, abordar temas cabeludos sem recorrer a malabarismos linguísticos acaba apontando para responsabilidades reais. E assim, sem meandros, a tortura praticada no período da ditadura militar brasileira foi qualificada como política de Estado. E os responsáveis finais por essa política de Estado estão listados nominalmente, começando pelo mais alto escalão. A História agradece. E a História do Brasil se engrandece.

A publicação do relatório da Comissão de Inteligência do Senado dos Estados Unidos sobre o abuso de poder da CIA entre 2001 e 2009 foi mais oblíqua na questão da responsabilidade final. Mas teve o mérito de acabar com uma das mais perversas sopas de palavras criadas e manipuladas pelo governo de George W. Bush — o eufemismo “Técnicas de interrogatório avançadas”, por vezes também chamado de “conjunto de procedimentos alternativos”.

No lugar desses eufemismos de sonoridade funcional, asséptica e enganosa, o relatório de 6.700 páginas e 38 mil notas de rodapé usa o substantivo correto, de compreensão universal: tortura. A partir de agora, todo cidadão americano terá de aceitar a responsabilidade de saber que autoridades de seu país optaram por transformar agentes em torturadores.

Apesar da avalanche de evidências, o atual diretor da CIA, John Brennan, não se sentiu capaz de pronunciar a palavra crua e nua em seu depoimento perante a comissão. Optou por designar como “métodos repugnantes” o elenco de atrocidades cometidas pelos serviços de inteligência. “Os interrogatórios eram cuidadosamente calibrados e humanos”, acrescentou em seu testemunho o ex-agente Melvin Goodman. E José Rodriguez, o mais graduado chefe de operações responsável pelo programa de tortura, ainda defendeu a prática como “tendo recebido o aval das mais altas autoridades jurídicas do país e ter sido aplicada por profissionais altamente treinados”.

Arma e adjetivo

Nessa linha, o descompasso mais grotesco entre fato e fantasia ficou a cargo de Michael Hayden. Por ter sido um dos diretores da CIA de George W. Bush, foi inquirido sobre a reidratação retal que fazia parte do balaio de abusos. “Alto lá”, indignou-se Hayden, “eram procedimentos médicos voltados para a recuperação de prisioneiros desidratados. Não podíamos recorrer a injeções intravenosas por estarmos lidando com detentos não cooperativos”.

No implacável relatório da comissão senatorial americana, porém, consta o telegrama de um agente relatando que o detento Majid Khan recebera o seu “almoço do dia (homus, macarrão com molho, nozes e uvas passas) por inserção retal. Usamos o tubo Ewal maior que tínhamos”. Um chefe da equipe de interrogadores listado no relatório confirmou a eficácia do método da reidratação retal: obtém-se o “controle total” do preso. O procedimento “limpava a cabeça” da vítima, testemunhou outro interrogador.

Perdida a batalha contra a divulgação do relatório, os apologistas das “técnicas de interrogatório avançadas” deslocam-se agora para outra trincheira. Tendo à frente o cavernoso Dick Cheney, vice-presidente à época e homem-forte do governo Bush, tentarão refutar as conclusões do trabalho e desmontar a acusação de que o Poder Executivo, o Congresso e o Departamento de Justiça receberam informações incompletas e equivocadas sobre o programa. “Tudo besteira”, diz Cheney, sem mexer qualquer músculo da fisionomia inescrutável. “O programa foi autorizado. A CIA não procederia sem autorização e tudo foi revisado pelo Departamento de Justiça antes de ser deslanchado.”

A sombria tagarelice de Cheney recebeu uma resposta alentadora por parte do veterano Ray McGovern, que por três décadas serviu a seu país como oficial de Inteligência do Exército e analista da CIA. “Hoje ninguém mais pode ‘autorizar’ a tortura. Nem o estupro. Nem a escravidão”, escreveu McGovern, hoje membro de um grupo intitulado Veteranos Profissionais de Inteligência Pró-Sanidade (VIPS). “A tortura faz parte da categoria moral que os estudiosos de ética classificam como mal intrínseco — o fato de ela dar ou não algum resultado é irrelevante.”

Segundo essa linha de pensamento, torturar é errado não pela existência de uma Convenção da ONU e de leis nacionais que a proíbem. Ocorre o contrário. As proibições legais foram sendo construídas porque as sociedades civilizadas reconheceram que seres humanos não devem torturar, ponto.

Joseph Brodsky, o poeta e ensaísta que emigrou para os Estados Unidos após ser expulso da União Soviética, escreveu: “A vida é um jogo cheio de regras, mas sem árbitro. Aprende-se a viver observando o jogo, mais do que consultando qualquer livro, inclusive o Livro Sagrado. Nenhuma surpresa, portanto, que tantos trapaceiem, que tão poucos vençam, que tantos percam.”

Para o detentor do Nobel de Literatura, o perigo está no homem que não sabe argumentar ou se expressar de forma adequada — ele acaba recorrendo à ação. “E dado que o vocabulário da ação limita-se, por assim dizer, a seu corpo, esse ser humano agirá com violência e estenderá seu vocabulário com uma arma no lugar do que poderia ser um adjetivo.”

A Comissão da Verdade brasileira e o relatório sobre Tortura do Senado americano certamente alegrariam a alma dividida do poeta.

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Dorrit Harazim é jornalista