Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Como ter água nas torneiras

Se o Estado está se revelando incapaz de desempenhar uma de suas funções básicas, a de fornecer com regularidade água potável para a sociedade, e se a mídia tem se mostrado passiva em relação ao descaso, certamente o cidadão deve tomar iniciativas para assegurar o mínimo de bem-estar a que tem direito.

Essa pode ser, agora, a única possibilidade de algum encaminhamento promissor. E a medida mais prática para isso ?? a menos que as chuvas cessem completamente ?? é a construção de reservatórios para estocagem das águas que, ausentes das torneiras, fluem perdidas para o leito de rios, riachos e ribeirões, mas, antes disso, inundam vias públicas e moradias produzindo cenas comparáveis à de um país rural. Ainda que o Brasil tenha concluído, a duras penas, sua urbanização nos anos 1970.

Mas, para substituir mais uma das funções do Estado ? o que já ocorre com parte da segurança pública, assistência social, educação e saúde, entre outras ? o cidadão deve ter direito a um mínimo de ressarcimento, sugestão que pode incomodar administradores públicos ? por aqui quase sempre referidos como “autoridades” ? pelo que pode parecer ousadia despropositada.

A questão, no entanto, é simples e, se tomada em conjunto, pode ao menos amenizar a situação que se encaminha para um ponto crítico, talvez insustentável, por ausência de planejamento, iniciativa responsável e visão de uns poucos palmos além do nariz.

Para ter mais representatividade ? e, neste sentido, estimular a opinião pública ? a ideia de que o Estado deva arcar com parte dos custos de iniciativas de cada cidadão talvez devesse ser encaminhada por uma entidade pública: uma das numerosas ONGs já organizadas para fazer o que não é feito pelo Estado, eventualmente uma entidade de classe de engenheiros, arquitetos, advogados. Ou mesmo jornalistas, entre outras categorias profissionais.

Essa iniciativa poderia reunir principalmente moradores de casas, ainda que não dispense o envolvimento coletivo de moradores de edifícios. Caixas de captação de águas pluviais, com um registro formal ? não necessariamente burocrático, caso contrário não iria funcionar ? deveriam ter sua execução feita a partir de pequenos projetos que, apresentados nas administrações de uma metrópole como São Paulo, renderia, por exemplo, descontos absolutamente procedentes no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).

Críticos apressados podem disparar que isso não faz sentido, porque o IPTU é cobrado pelas prefeituras enquanto, no caso de São Paulo, é uma empresa mista, a Sabesp, quem deveria assegurar o abastecimento de água.

Nenhum desafio para a capacidade de computação que caracteriza o século 21. As prefeituras comunicariam o Estado de quanto foi o desconto no imposto pela construção das caixas de captação de águas pluviais e o Estado transferiria esse valor aos cofres municipais.

Por que o argumento de que o Estado deve arcar com essas despesas, ao menos em parte, ainda que o justo seja a totalidade?

Impostos não justificados

Por que o Estado recolhe tributos para, entre outras obrigações, assegurar o abastecimento de água potável, mas, como não fez isso, o resultado é a crise das torneiras vazias que deve piorar com o fim das chuvas de verão. Mas também porque a captação de águas fluviais para um uso geral ? reservando-se a água tratada para consumo direto ? vai aliviar a pressão de demanda e, neste sentido, ao menos durante certo tempo, evitar investimentos pesados para captação de água rara e cada vez mais distante.

Parte da opinião pública, em especial a mais engajada do ponto de vista político-partidário, pode argumentar, com a estratégia típica da avestruz, que a falta de água se explica por um fenômeno da Natureza, a estiagem que compromete os reservatórios disponíveis. O argumento da estiagem não deixa de ser verdade, mas não é toda ela e isso é o que distingue radicalmente as coisas em situações como a que estamos vivendo.

É verdade, por exemplo, que as chuvas rarearam em 2014. Mas é verdade também que o processo de aquecimento global com mudanças climáticas em curso deveria ter sido levado em conta pelos administradores públicos. Especialmente o governo de um Estado com a importância estratégica de São Paulo para a economia e desenvolvimento do país.

Há décadas, e relatórios internos da própria Sabesp já preveniam para isso, o abastecimento hídrico de São Paulo é precário e exige medidas corajosas e lúcidas para ser ampliado, de forma a não deixar a população e a atividade econômica reféns de um fenômeno da Natureza.

Ainda não dominamos a Natureza, apesar das previsões temerárias de Francis Bacon, um dos pais da ciência moderna. E, se dominássemos, economistas que assessoram administradores públicos já teriam encontrado uma maneira de nos levar a situações piores que as criadas por fenômenos naturais.

Até onde pôde, o governador de São Paulo rejeitou a dimensão da crise hídrica da cidade de São Paulo e de boa parte do interior do Estado. E quando se referiu ao problema, sempre atribuiu a culpa à intemperança de São Pedro. Foi neste contexto que toda a mídia, em especial os jornais, com a obrigação de investigar questões de relevância social como o abastecimento de água, foi omissa, negligente, acomodada e, neste sentido, conivente com a desconversação do Palácio dos Bandeirantes.

Omissão da imprensa

Duas razões talvez possam explicar ao menos parte desse comportamento: um deles diz respeito à própria desorientação da mídia tradicional, que perdeu o rumo com o impacto/interação/fusão com conteúdos online de natureza apressada e superficial. Neste sentido, um processo que alguém já chamou de “juniorização” da imprensa também dá sua contribuição para piorar o que já estava ruim.

Em parte da imprensa, a arrogância substituiu a competência, a necessidade de investigar antes de opinar sobre tudo, especialmente sobre o que não se conhece o suficiente. Na rede digital a situação é, às vezes, exótica e se expressa, por exemplo, em grafias surpreendentes: a confusão entre sexta, sinônimo de um dia da semana, e cesta, objeto com que se transporta, por exemplo, compras na feira.

Outro calcanhar da mídia, em particular dos jornais, é o envolvimento/comprometimento com disputas político-partidárias de fundo ideológico, intolerante, provinciano e autoritário. Tão mais paroquial quanto mais pretensamente se procura negar.

A tendência nas redações, e já faz algum tempo que isso ocorre, é de ascensão via fidelização, submissão a padrões medíocres, inconsistentes e incompatíveis com o jornalismo de investigação: a reportagem bem feita, a história bem contada, com todos os ângulos possíveis de determinada situação. Com isso o jornalismo que se faz neste momento não apenas cava sob seus próprios pés como dá espaço para que omissões, de todos os tipos, ocorram. Fala-se e escreve-se sobre o óbvio e quando o óbvio já está consumado. Não se investiga, informa, denuncia, critica como forma de evitar o indesejável.

O jornalismo que já praticamos por aqui não existe mais, daí as surpresas com a sucessão de escândalos, omissões, negligências e patifarias de todos os estilos. Entre elas a crise da água e mesmo do fornecimento de energia elétrica.

O jornalismo deixou de ser crítico, analista, previdente, no sentido de se antecipar a certos fatos, e passou a sensacionalista. No caso da água, a situação deve ficar ainda mais difícil do que muita gente de boa fé está disposta a acreditar.

Um encontro, em novembro passado, reunindo 16 cientistas da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp), de que a imprensa sequer tomou conhecimento, produziu um documento perturbador, a “Carta de São Paulo” sobre a crise hídrica do Sudeste. Nessa síntese, pesquisadores de hidrologia e áreas afins expressam o temor de que a estiagem de 2014 pode ser o início de um novo ciclo e não uma ocorrência isolada, um mau humor passageiro de São Pedro, como temos sido convidados a acreditar.

Se for essa a realidade do futuro imediato ? e neste caso ninguém pode garantir tanto o sim quanto o não ? a situação pode ficar dramática o suficiente para produzir mudanças profundas na economia e na vida social do Sudeste, com reflexos em todo o país.

Preocupação estratégica

O que pode ocorrer não é coisa de futurismo, mas uma questão de natureza histórica, que só o tempo pode confirmar. Mas o interessa aqui é que, em termos estratégicos, caso do abastecimento de água, é preciso preparar-se para o pior, como forma de se assegurar o melhor.

E isso simplesmente não foi feito.

Foi neste contexto que o secretário de Recursos Hídricos, porta-voz do governo e otimista inveterado quanto à superação da crise, Mauro Arce, foi substituído, num golpe rápido e sem maiores explicações, por Benedito Braga, ex-presidente da Agência Nacional de Água (Ana) e presidente do Conselho Nacional de Água.

A mudança ocorreu no final do ano, em meio às correrias típicas da data. Um profissional na posição de um amador. E por que isso ocorreu com os fatos já consumados, o que significa dizer, com a crise já completamente instalada. Essa é uma das perguntas que os jornais deveriam ter feito.

Também as mudanças na direção da Sabesp ocorreram sob a pressão de uma tentativa proustiana de recuperar o tempo perdido com denegações de interesse eleitoral. Antes disso prevaleceram as prioridades das eleições de outubro. Ainda que, na Sabesp, a longa história da crise hídrica esteja para ser contada.

Uma edição especial de Scientific American Brasil, relativa à crise da água no Sudeste, nas bancas no final de janeiro com o título de “A Exaustão das Águas”, traz um levantamento amplo e completo dessa situação, a começar pela “Carta de São Paulo”. O que se pode ler ao longo da edição é um conjunto de desconfortos com o presente e de enorme e inédita preocupação com o futuro.

São Paulo deveria, há décadas, ter se preparado para o desafio do abastecimento de água, estimulando a reciclagem ou reúso, sensibilizando a população com campanhas educativas e também aproveitando as águas pluviais, agora a alternativa mais sensata para se amenizar a crise. A não ser, evidentemente, que as chuvas sejam ainda mais raras a partir do fim do verão e por isso insuficientes para recuperação dos reservatórios esvaziados até mesmo do que ficou conhecido como “volume morto”.

Se o pior temor dos cientistas que produziram a “Carta de São Paulo” se confirmar ? a partir de mudanças climáticas por trás do aquecimento global, mas também por destruição da Floresta Amazônica ? teremos um caso em que a realidade supera a ficção.

A destruição da Floresta Amazônica, talvez seja conveniente acrescentar, não é um desses casos de romantismo desarticulado, em que um conjunto disparatado de situações é considerado numa única equação com intenção de corroborar uma hipótese. O conhecimento climatológico disponível é mais que suficiente para explicar a formação de nuvens na Amazônia por efeito direto da floresta. O que ocorre em seguida é que ventos dominantes, confinados pelo paredão dos Andes, transportam essas nuvens até o Sudeste onde elas se precipitam sob a forma de chuva.

Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), particularmente o biogeoquímico Antonio Nobre, estão convencidos de uma conexão direta entre destruição da floresta e efeito nas chuvas do Sudeste.

Impacto da destruição de florestas

Mas a destruição das florestas é um processo que começou com a chegada de Cabral e seus marujos na costa do que é hoje a Bahia e, desde então, machados e depois motosserras não descansaram um único dia. Por tudo isso, a iniciativa óbvia, prática e preventiva de construção de reservatórios para captação de águas de chuva em todo o Sudeste, em especial na megalópole de São Paulo, é uma iniciativa óbvia e necessária.

E o Estado deve ser moralmente solidário com a população nessa iniciativa. Entre outras razões porque é o responsável legal por uma garantia que não cumpriu e, agora, é tarde demais para isso. A solução são iniciativas de emergência.

O esforço coletivo para aproveitamento das águas das chuvas, além de um ato de racionalidade, é também uma atitude de construção de maior coesão social, inclusive como maneira de enfrentar irresponsabilidades governamentais nas diferentes instâncias: municipal, estadual e também federal. Além disso, o que sobra são as passeatas e os protestos de sempre, que tendem a perder força e representatividade. E isso não apenas no caso da água, porque em relação à energia elétrica, a situação não é muito diferente.

A cada ano, burocraticamente, como se não fôssemos um país majoritariamente tropical, o governo federal decreta o “horário de verão”, com a justificativa de economia de energia. Mas, o sacrifício dos que saem da cama ainda com a noite escura, entre eles trabalhadores que vivem nas periferias e dependem de transportes abarrotados, não se justifica.

Quase sempre, na primeira trovoada, em inúmeros bairros, um transformador explode com a potência de uma banana de dinamite e a energia vai embora. É o que ocorre, por exemplo, no Sumarezinho, bairro paulistano tombado pelo patrimônio histórico, onde as interrupções no fornecimento de energia são, a cada ano, mais frequentes e duradouras. As luzes se apagam e o trabalho que deve ser feito na frente de um computador fica paralisado por horas a fio.

Quem paga por essas perdas? Ninguém paga. Aparentemente, ninguém ter qualquer coisa a ver com isso. Mas, no momento de reajuste de tarifas, uma multidão de interessados se manifesta com voz na mídia.

Exposição de doentes e idosos

Isso sem levar em conta as emergências em hospitais, moradores de edifícios com idade avançada que devem ser transportados de forma improvisada por parentes e vizinhos. Quando não ficam aprisionados em elevadores.

A justificativa de sempre é a queda de árvores. Mas nem sempre isso é real. O que ocorre de fato, em muitos casos, é uma infraestrutura sucateada, incapaz de dar conta do que se espera que possa dar conta.

Uma maneira prática e inteligente de se amenizar a crise de energia que agita os burocratas do governo é estimular a produção doméstica de energia, a partir de placas fotovoltaicas instaladas em residências.

Utopia? Na cidade de Phoenix, no Arizona (EUA), a oferta de energia elétrica produzida em domicílio já abriu uma guerra com as companhias tradicionais de distribuição. Em Phoenix há sobra de energia e os produtores domésticos descarregam o excesso na rede das companhias de distribuição, gerando atritos e insatisfações mútuas.

Por aqui, nem isso ocorre. E não ocorre por falta de iniciativa oficial, no sentido de se obter produção “em domicílio” de energia elétrica. Neste caso, os lobbies de produtoras e distribuidoras de energia não estão nem um pouco interessados em estratégias desse tipo. E os jornais são os veículos de divulgação desses lobbies. Nenhum questionamento, nenhuma postura crítica, nenhuma sugestão de mudança, de inovação ou do que quer que seja para alterar a situação.

Na ausência de reação crítica, o resultado é a construção de seguidas usinas hidrelétricas afetando terras indígenas, áreas de vida animal e vegetal únicas, investimentos pesados com encargos sociais e perturbações como a que ocorre, por exemplo, com a hidrelétrica de Belo Monte, no sul do Pará. Sem falar nos custos extras por acionamento de termelétricas, fontes altamente poluidoras e por isso mesmo indesejáveis de oferta de energia.

Mas nem assim estamos seguros em relação ao abastecimento. O Brasil dispõe do maior estoque de água doce do planeta, algo em torno de 12% e 14% de toda a água da Terra. Mas, com tudo isso, ainda nos ressentimos de água potável e de energia estável.

Um país atrasado, segundo o filósofo da ciência Mario Bunge, é um país de mentalidade atrasada. Se isso de fato for verdade, talvez as mudanças devam começar por cada um. E a construção de reservatórios para águas pluviais, com exigência de contrapartida do governo, poderia ser um primeiro passo.

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Ulisses Capozzoli é jornalista, editor-chefe da Scientific American Brasil