Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Ecos da democracia racial no jornalismo

Quando pus meus olhos na manchete que fazia menção a uma reportagem sobre a persistência da desigualdade social no ensino superior federal no site do Estado de S.Paulo (“Universidades federais criadas na gestão Lula mantêm desigualdades“) fui correndo à banca, comprei o jornal (quinta-feira, 18/8) e li ali também para ter certeza estar com algo completo. Na noite do mesmo dia fiz uma pesquisa em sites das cinco primeiras elitizadas segundo gráfico no jornal (pág. A18). Adentrei em seus editais.

Considero esta matéria tendenciosa, feita para iludir novos leitores do jornal e para manter desinformados os já existentes. De um lado, um jornal conservador com linha editorial nitidamente anticotas raciais e de outro um instituto originador desta pesquisa, a Andifes – Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, a qual deixa transparecer também ser contra cotas raciais. Basta ir ao portal da Andifes na internet para ver uma maioria expressiva de links a direcionar a textos de teor anticotas raciais. Inclusive, há títulos que são uma verdadeira provocação. Então juntamos um jornal conservador anti-cotas e um instituto com tendência anticotas. O que podemos esperar desta dupla? São tão previsíveis.

Vamos então analisar a matéria. Num primeiro dado estatístico, ela diz que das 14 universidades criadas, em cinco há mais ricos que pobres – UFCSPA, UFABC, Unifal, UFTM e UTFPR. Ocorre que destas cinco, apenas na UFABC é previsto o sistema de cotas com recorte racial, num percentual para negros de 14% do total em cada curso, 36% para quem vier de escola pública e não se declarar negro e 50% para o sistema universal. Caso não se preencham as vagas destinadas às ações afirmativas, estas serão preenchidas pela lista geral.

Turmas com 100% de brancos

O jornalista se surpreende pelo fato de existirem mais alunos da classe A e B nesta universidade e se surpreende mais ainda pelo fato de existirem na Universidade Federal do ABC – UFABC 71,14% de estudantes brancos. Ora, se no edital prevê 14% de negros, há de convir que 86% sejam não negros (incluindo aqui os amarelos). E o índice que deixou o jornalista impressionado foi 71,14% de estudantes brancos, 15% abaixo do previsto, que pode variar… mas para menos, pois se já é garantida a cota de 14% para negros vindos de escola pública, é provável que negros de escola privada adentrem pelo sistema universal, aumentando assim este percentual no conjunto total. Atenção para o fato de que aqui é previsto no mínimo 14% de negros em cada curso. No total, pode aumentar, pois há cursos em que o percentual de negros pode ser maior. São os cursos onde a concorrência é menor, pois menos procurados pelos estudantes privilegiados de nossa sociedade – e não vamos nos iludir também pelo lado inverso, pois há cursos que não são preenchidos pelos 14% de negros. As vagas aqui remanescentes serão ocupadas pelos classificados dos demais grupos.

Nunca é demais salientar o fato de o jornalista não ter dito se os amarelos fazem parte do percentual de 71,14% ou dos 28,86% de não brancos. Uma omissão dentre tantas outras.

O jornalista se surpreende pelo fato de na UFCSPA – Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre – existirem 91% de brancos. Acho natural, perfeitamente natural. Afinal de contas, ali não é previsto reserva de vagas para negros. Um estudante negro que adentrar naquele site à procura de uma informação precisa desistirá logo de cara. O jornalista não precisa ir tão longe, a Porto Alegre, para observar tamanha exclusão. Basta ir ali à USP fazer uma visita aos cursos de Ciências Médicas. Há turmas com 100% de brancos. É apresentado outro dado da UFCSPA: 84,85% são estudantes das classes A e B. E, novamente, um “que absurdo!”. Tolice, pelas regras de preenchimento de vagas, nada demonstra poder existir um número mais justo para as demais classes. Novamente silêncio em relação aos jovens de origem asiática.

Entrada sem solavancos

Na Unifal – Universidade Federal de Alfenas, um jovem negro, estudante de escola pública, que acessar seu site entenderá perfeitamente que ali dificilmente entrará ante os problemas seculares de nossa sociedade excludente, pois inexiste um programa de ações afirmativas com recorte racial. Se este estudante tiver um pouco de tempo e paciência, poderá acessar o Plano de Metas 2011 desta universidade e procurar em suas 80 páginas. Dou uma dica, não perca tempo com as 80 páginas; basta olhar no sumário e não verá nada acerca da inclusão de negros e negras.

Na UFTM – Universidade Federal do Triângulo Mineiro, temos ações afirmativas num bônus de 10% para quem vem de escola pública, multiplica-se a nota deste aluno por 1,1. São ações afirmativas com critério social. Sem olhar a cor do estudante. Já ficou provado serem as cotas exclusivamente sociais um sistema ineficaz de inclusão do negro. Pode até ter aumentado o número de negros no conjunto total, de forma global, porém em cada curso há um forte desequilíbrio em relação aos cursos mais concorridos.

Os que defendem as cotas exclusivamente sociais entendem não existir diferenças entre brancos e negros vindos de escola pública. Num país racista como o nosso, a diferença entre negros e brancos começa ao nascer em desfavor do negro. Esta diferença se alastra durante a trajetória de vida de ambos. Um branco pobre sofre os percalços por ser branco pobre. Sofre uma única vez. Ao passo que o negro pobre sofre duas vezes, por ser pobre e por ser negro. Os que pensam o contrário, seja qual for o ideário político-sociológico, são os devotos da democracia racial.

Enfim, temos a UTFPR – Universidade Tecnológica Federal do Paraná, a quinta universidade exposta como elitizada pela presença majoritária de estudantes das classes A e B. Nesta universidade, são previstas cotas sociais, sem olhar a cor do estudante. Como já demonstrei na explicação em relação à UFTM, nesta 5ª prevalece a visão da democracia racial, visão entranhada em nossa cultura.

Com relação a outro ponto da reportagem, sobre a maioria dos egressos serem brancos em oito universidades, nunca foi esperada uma revolução de inclusão social e racial de forma imediata e automática. Sabíamos ser uma transição e também sabíamos que a revolução verdadeira é colocar lá dentro quem antes nunca estaria nas condições atuais de exclusão racial. O “espanto” na matéria deixa transparecer não ter sido automática a inclusão com a criação destas academias para as classes sociais C, D e E, bem como aos negros (pardos e pretos) e indígenas. Uma entrada sem solavancos. As universidades foram criadas e, respeitando a autonomia de cada conselho universitário, foram impostos os critérios de admissão como qualquer universidade federal, critérios estes que nós (pró-cotas), reconhecemos serem excludentes onde não existem ações afirmativas pelo recorte racial.

Pluralidade de cores

Noutro ponto e respeitando os manuais de jornalismo, advém a necessidade de apresentar um argumento de autoridade. Entra em cena a opinião de uma especialista e professora universitária. O fato de ser especialista ganha destaque em relação à profissão efetiva. Segue uma sequência de argumentos tidos como solução única para resolver todo este problema de inclusão, qual seja, a melhora da qualidade do ensino médio. Como mantra sagrado dos anticotas raciais, ela explica não adiantar colocar na universidade pública um jovem sem qualificação necessária. Deixa assim o leitor desavisado acreditando na existência de um suposto “entra quem quiser”. Este mesmo leitor desavisado acreditará estarmos deixando de lado os investimentos na escola pública. Uma inverdade, na medida em que tanto defendemos a melhora no ensino público como sabemos estarem todos os vestibulandos submetidos a uma mesma nota de corte, nota de corte esta elaborada por uma comissão de estudiosos da universidade.

Em sua última intervenção, a especialista teme a massificação por conta do acesso ao ensino superior. Estranha preocupação levantada por ela. Afinal de contas, a massa de estudantes que não entraria caso não existissem cotas raciais seria ocupada por uma mesma massa física de estudantes que adentrariam pelo sistema universal. A massa é a mesma. Estaria a especialista defendendo a redução de vagas?

Então, caríssimos leitores e leitoras, abracemos esta causa, vamos pressionar as universidades federais que ainda não adotaram o sistema de ações afirmativas em conjunto ao critério racial que o façam, pois onde é aplicado o sistema temos milhares de histórias de sucesso – sucesso não apenas para os estudantes negros e negras, mas também para todo o universo acadêmico. O nosso país com certeza será mais justo tendo nossas universidades um mar de cores. Uma pluralidade de cores.

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[Francisco Antero Mendes de Andrade é servidor público, São Paulo, SP]