Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Naufrágios, goleadas e outras façanhas

>> Carinho na rua, gringo na mídia

O Padrão Brasil, vislumbrado em 1941 por um austríaco angustiado, se impôs 73 anos depois.

Vencedor por aclamação, o povo-anfitrião foi a zebra. Esperavam-se confrontos, quebradeira, sangue, brigas. Sobrou carinho. Ninguém sabia exatamente o que significava fair-play, esportividade, e de repente, depois da maior catástrofe futebolística da nossa história e de um apagão catatônico de alguns dias, o torcedor acordou e soube prestigiar o implacável adversário da semifinal. Era o melhor. A Alemanha ensinou o Brasil a perder. Tem experiência: em apenas 31 anos foi fragorosamente derrotada em duas guerras mundiais.

Um povo monoglota tornou-se poliglota graças ao coração, à alegria inata, irresistível. Este é um legado que vale a pena incorporar, explorar e exportar. Stefan Zweig viu tolerância onde outros só encontravam exotismo. Acertou. Mesmo que errasse ao afirmar que o povo não se empolgava com eventos esportivos.

Enquanto isso, uma mídia boboca chamava os visitantes de gringos. Achou bacana, moderno. A expressão é pejorativa, grosseira, preconceituosa: desumaniza o estrangeiro, insulta-o com uma etiqueta diferenciadora que contraria a noção de hospitalidade e acolhimento. Gringo era o opróbrio preferido do Brasil fascista dos anos 1930 e 40. Não deveria ser ressuscitado.

As vaias e xingamentos à presidente da República diante de outros chefes de governo continuam agredindo os princípios mínimos de decência. Isso não se faz, é uma brutalidade que só se justificaria numa ditadura. Dilma Rousseff preside uma democracia, foi eleita pela maioria, ela e a maioria precisam ser respeitadas.

>> Da crítica à complacência, o difícil equilíbrio

A mídia, porventura, errou ao chamar a atenção para o atraso nas obras, excesso de sedes, previsões orçamentárias desrespeitadas? Da imprensa não se espera outra atitude se não a de advertir para erros, apontar irregularidades e cobrar providências. O cronograma estava visivelmente comprometido, corria-se o risco de começar a Copa com andaimes nos estádios, tapumes nos aeroportos, nó monumental no trânsito, caos nas comunicações.

A imprensa pensava no público, tanto a nacional como a internacional. E graças à salutar verberação, as autoridades se apressaram, abusos foram evitados e providências extremas adotadas. Sem a fieira de feriados nos dias de jogos do Brasil ou nas cidades-sede o país ainda hoje estaria engarrafado. Mesmo nos dias úteis registrou-se um abrandamento geral nos horários e nos compromissos. Durante cinco semanas as viagens de negócio foram praticamente suspensas. Isso tem um custo, sobretudo em situações de depressão econômica como a atual.

A imprensa tropeçou no único quesito onde é absolutamente soberana: no futebol. Governos só se metem com escalações e táticas em regimes autoritários (foi assim em 1970). A imprensa, ao contrário, tem carta branca para exigir qualidade. Sem a associação imprensa/mídia com a sociedade não existiriam esportes de massa nem eventos com as proporções dos Mundiais de Futebol ou das Olimpíadas.

Nossa imprensa foi complacente com a seleção antes mesmo de haver seleção. Não queria fazer coro ao que parecia derrotismo dos primeiros cadernos e do horário nobre na TV, e preferiu a brandura. A Comissão Técnica foi indicada e engolida sem qualquer debate ou esperneio; mais do que isso, foi saudada como salvadora.

Jornalistas tão experimentados, lidos e viajados deveriam chamar a atenção para o que estava acontecendo com a Costa Rica, Colômbia, Nigéria, Bélgica, Holanda, Estados Unidos e Alemanha.

Ninguém reclamou contra a lista de convocações. Houve unanimidade em reconhecer que Kaká, Ronaldinho e Robinho estavam com os prazos de validade vencidos. Não se ousou questionar o prematuro ostracismo de craques tão experientes. Na partida de estreia ninguém reparou no nervosismo dos jogadores antes mesmo de entrar em campo. Tremiam como se nunca tivessem disputado uma decisão. O inédito gol contra de Marcelo na partida com a Croácia foi digerido com a maior naturalidade. A instabilidade emocional era flagrante, e àquela altura poderia ser revertida.

Numa Copa, e em casa, amarelar desse jeito só podia ser de mau agouro. O resultado direto da primeira perturbação foi o apagão de seis minutos na semifinal em que os alemães iniciaram o massacre.

É natural que jornalista acumplicie-se com o atleta, afinal é uma fonte valiosa, vítima de um sistema de exploração etc., etc. Mas a cumplicidade maior do jornalista deveria ser com o seu leitor-ouvinte-telespectador. Num dos últimos jogos, ainda no túnel e antes de entrar em campo, Neymar estava preocupado em exibir para as câmeras a marca da sunga pela qual fora contratado como garoto-propaganda. Não lhe bastam os milhões que ganha com as cuecas. Não fosse lesionado no jogo contra a Colômbia e chegasse à semifinal ou final, talvez concordasse em exibir suas intimidades por mais alguns trocados.

O fabuloso faturamento publicitário por acaso não desnorteia e desfibra esses garotos, levando-os a esquecer a seriedade dos códigos de conduta esportiva? Será que a fragilidade da mídia e o poder dos patrocinadores é tão grande que ninguém ousa contrariá-lo? Estamos falando da grande imprensa, o chamado Quarto Poder, e não de jornaizinhos do interior incapazes de enfrentar os desmandos do magistrado local com medo de multas e indenizações que os levariam à falência.

>> Na era da imagem em movimento, a foto pode ter mais impacto.

Isolada. ou mesmo em sequência, uma foto não conseguiria reproduzir a beleza do gol de Goetze. Algumas fotos deste Mundial congelam momentos estelares, não precisam de legendas, contam tudo:

** Neymar caído, berrando de dor, com a mão nas costas no lugar em que fraturou a vértebra (foto de Fabrizio Bensch, Reuters) no alto da capa da Folha de S.Paulo e do Globo (sábado, 5/7);

** Mesmo dia, mesmo jogo contra a Colômbia, o zagueiro David Luiz extravasa fúria e alegria comemorando o segundo gol do Brasil (foto de Ivo Gonzalez, capa do Globo; foto de Eduardo Knapp, capa da Folha);

                       

** Fileira de jogadores da Holanda desespera-se com o derradeiro pênalti enquanto a fileira de argentinos corre para abraçar o goleiro Romero. Nem ele nem a bola aparecem: eram dispensáveis. Foto de Ricardo Morais, Reuters; capa do “Caderno da Copa” de O Globo (10/7);

                                        

** Intervalo do jogo Holanda-Brasil: reservas brasileiros, inclusive Neymar e Marcelo, passam instruções a Thiago Silva; atrás, sozinho e isolado, Felipe Scolari (foto de Eduardo Knapp, capa da Folha, 13/7). Dia seguinte, o técnico deixava a seleção. 

                                         

>> Em tempo:

O  tabloide vespertino carioca Meia Hora não tem distribuição além do Grande Rio. Em São Paulo e outras praças, os cultores do bom jornalismo foram privados de tomar conhecimento da melhor e mais criativa capa da temporada futebolística. Aqui vai com algum atraso, muitos aplausos e um comentário: um povo cresce quando aprende a rir de si mesmo. 

                                   

***

Leia também

‘Mannschaft’ é mais do que equipe – A.D.