Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O dever de um jornal – II

O Globo tem um profundo respeito por seus leitores e, ao longo de sua história, jamais se permitiu agir de outra forma. Não será diferente desta vez.

Ontem [quarta-feira, 18/2], o deputado Marcelo Freixo publicou artigo nessas páginas [ver "A exaltação de um factoide"]. Exercitava o seu direito de discordar da cobertura que o jornal fizera da morte do cinegrafista Santiago Andrade, da TV Bandeirantes: seu nome foi envolvido no noticiário e o jornal deu destaque a isso. No dia anterior, O Globo explicou os seus motivos, e, hoje, os mantém plenamente.

Em seu artigo, porém, Freixo não apenas discordou da cobertura explicando os seus porquês. Preferiu, num momento grave como esse, fazer ironias com o jornal, com afirmações falsas. É em respeito a seus leitores, e somente a eles, que O Globo dedica esse espaço a refutá-las.

Freixo iniciou seu artigo fazendo referência ao apoio que O Globo, assim como praticamente todos os periódicos da época, deu ao golpe de 1964, fato já ampla e formalmente reconhecido pelo jornal como um erro editorial. Na ocasião, O Globo afirmou: “A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma.”

No mesmo artigo, Freixo estranhou a falta de ímpeto editorial do jornal diante da “comprovada ligação do governador em exercício Sérgio Cabral e o empreiteiro Fernando Cavendish”. O deputado perguntou, ainda, quantos textos foram escritos sobre as relações entre o governador e Eike Batista. Pois bem, o jornal jamais se calou sobre tais temas.

Aos fatos:

Na edição de 21/6/2011, O Globo publicou a cobertura do enterro de vítimas do desastre de helicóptero, em Trancoso, Sul da Bahia, em que morreu, entre outros, Mariana Noleto, namorada do filho do governador Sérgio Cabral, Marco Antônio, numa viagem para a festa de comemoração do aniversário de Cavendish. Na mesma página, sob o título “Relações delicadas”, O Globo revelou que Cabral viajara num jato do empresário Eike Batista, “com quem [o governo] tem contratos de R$ 1 bilhão”.

Na edição do dia seguinte, o jornal denunciou que “a emergência tem sido aliada fiel da Delta Construções no estado.” Ou seja, a empresa de Cavendish, em nome da urgência de obras, vinha sendo favorecida com contratos assinados sem concorrência: R$ 58,7 milhões, quase um quarto de todos os recursos empenhados parapagamentos à empreiteira no primeiro semestre daquele ano.

Na edição de 23/6, na sequência, O Globo publicou o editorial “A promiscuidade na vida pública”, em que afirma: “A tragédia ocorrida no fim de semana , com a queda do helicóptero no Sul da Bahia, desvendou ligações do governador Sérgio Cabral com empresários [Fernando Cavendish e Eike Batista que colocam questões sérias sobre até que ponto deve ir o relacionamento entre pessoas do mundo privado e público, sem que seja ultrapassada a fronteira do conflito de interesse”. No final, afirmou: “A tragédia no Sul da Bahia (….) deveria servir de alerta aos homens públicos que se descuidam e não delimitam espaços entre os cargos eletivos que ocupam e os interesses que o cercam. Legítimos, mas tóxicos.”

Na edição de 28/6, na reportagem sob o título “O preço da bondade”, o jornal esmiuçou a lista de beneficiados pela concessão de benefícios fiscais pelo governo Sérgio Cabral. Encontrou na relação empresas de Eike Batista e destacou, em um quadro, que até o iate do empresário foi beneficiado por incentivos fiscais. A OGX, de exploração de petróleo, que depois enfrentaria graves problemas financeiros, a LLX, do setor portuário e da área de mineração, também receberam benesses do estado. Sequer o restaurante de comida chinesa do empresário, Mr. Lan, deixou de ser beneficiado. E O Globo publicou tudo.

Melhores normas

Em seu artigo, Freixo desejou saber, ainda, “quantos editoriais” foram publicados sobre “o fato de a empresa de advocacia da primeira-dama, Adriana Ancelmo, ter contratos com concessionários privados.

Aos fatos:

Editoriais, nenhum. Mas, como deve agir a imprensa profissional, O Globo não omitiu de seus leitores as acusações que a primeira dama vinha sofrendo. Em 26/1/2010, sob o título “Primeira-dama terá de explicar contrato à OAB”, o jornal trouxe a opinião de especialistas contrária, do ponto de vista ético, à atuação da advogada na defesa do Metrô, uma concessionária de serviço pública no Rio de Janeiro.

Em 18/8/2010, O Globo registrou o arquivamento, pela Procuradora-Geral da Justiça, da representação contra o escritório em que advogava Adriana Ancelmo por ocasião daquela defesa do Metrô, e informou que a Comissão de Ética da OAB continuava a analisar o caso. Três dias depois, o jornal noticiou que o deputado Marcelo Freixo decidira encaminhar denúncias contra o governador, uma delas devido ao trabalho da primeira-dama contratada por concessionários públicos.

Esta é a verdade, disponível a quem se disponha a pesquisar o arquivo digital do jornal.

No artigo de ontem, o deputado Freixo declarou que não se acha acima do bem e do mal. Melhor assim. O Globo também não. Como seus leitores são testemunhas, o jornal reconhece seus erros, quando ocorrem. A cobertura da morte do cinegrafista Santiago Andrade não foi uma dessas ocasiões: o jornal se orgulha do trabalho que realizou.

No ato de desagravo a favor do deputado, que ocorreu na segunda-feira, muitos declararam que confiam irrestritamente nele. O Globo respeita plenamente essa posição, mas, por dever de ofício, não pode e nem deve confiar irrestritamente em ninguém.

O Globo não tem interesses partidários. Preocupa-se, na cobertura sobre a morte absurda do cinegrafista, a ajudar a desvendar o caso. Não acusou o deputado de nada. Registrou, com o destaque merecido, o que dele se falou, abertamente e sem reservas. Era uma obrigação.

É preciso que se diga, porém, que O Globo nada tem contra Marcelo Freixo. Registre-se que o deputado teve apoio do jornal na CPI das Milícias, essa praga que, juntamente com o tráfico de drogas, ainda infernizam o Rio de Janeiro. E terá novamente sempre que agir em benefício do país, de nossa sociedade, de nossa democracia. Assim exigem nossos princípios, por sinal publicados e à disposição de todos.

O Globo trabalhará sempre, dentro das melhores normas que balizam o jornalismo profissional, a favor desses princípios. E denunciaremos tudo o que for no caminho contrário a eles.