Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O repórter que viu a banda passar

Como a sessão de cinema que nos tira do abismo em 90 minutos, Geneton Moraes Neto produziu um oásis televisivo no fim de semana. Era um western com tiros para todo lado onde só havia entrevistado e entrevistador e a arma era a palavra. Escrita, lembrada, falada, gravada em 20 anos de conversa no apartamento da Rua Francisco Sá, em Copacabana, onde o entrevistador apareceu um dia sem ser convidado e sem ter onde publicar. Mas também poderia ser um filme de amor ao Jornalismo. Garrafas ao Mar – A víbora manda lembranças, documentário de 90 minutos, deixou saudade do jornalista direto, corajoso, ferino, cruel e genial, o maior repórter brasileiro como Geneton homenageou Joel Silveira.

O convite recusado para assistir ao casamento adiado que depois duraria dois dias, três noites e três madrugadas virou “A milésima segunda noite da Avenida Paulista”. O casamento de Filly com João, a filha do conde Francisco Matarazzo Jr. com o milionário carioca João Lage, não saiu sozinha; no final, Joel arrematou com o casamento de Nadir e José, a operária e o torneiro mecânico da fábrica de Matarazzo.

Foi Joel que inaugurou o “Novo Jornalismo” na imprensa brasileira ao traçar um retrato cruel da elite paulistana em “1943: Eram assim os grã-finos em São Paulo”. Sergipano, ele tinha desembarcado do vapor Itagipe com 200 réis no bolso, em 1937, para em seguida escrever no semanário literário Dom Casmurro, onde foi bater sem recomendação, apenas por ser o jornal que seu pai lia. Um ano depois trocava Dom Casmurro pela revista Diretrizes, de Samuel Wainer, onde publicou o deboche da grã-finagem paulista, e ficou até a revista ser fechada pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda da ditadura de Getúlio).

Crítica definitiva

Quem apresentou Joel ao dono dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, foi o político mineiro Virgilio de Melo Franco: “Está aqui a víbora que o senhor quer contratar”. Chatô escalou a “víbora” para cobrir a Segunda Guerra junto à Força Expedicionária Brasileira, recomendando: “Mas não me morra, seu Silveira. Repórter é para mandar notícias, não é para morrer”.

“Fui para a guerra com 27 anos, passei dez meses e voltei com 40 anos. A guerra”, Joel contou a Geneton, “me tirou 13 anos.”

João Cabral, Portinari, Nássara, Paulo Mendes Campos, Drummond, Fernando Sabino, ninguém escapou da “víbora”. Foi um agnóstico (“só os ricos e os inocentes acreditam que Deus é brasileiro”) que dissecou as vísceras de três papas (“Paulo VI, asceta, frio e distante; João XXIII, exuberante; e Pio XII, nem coroinha de sacristia, um débil mental. Mas com outros religiosos eu conversava, nem eles falavam de Deus, nem eu de mulheres”). E de vários presidentes, como Getúlio Vargas, que no primeiro encontro, ao ouvir que o rapaz só queria uma entrevista, não um emprego, se levantou da cadeira e foi embora, deixando o repórter impressionado com a pequenez da estatura e com as mãos lisas do quase entrevistado. Mas Joel não desistiu, colheu conversas e tantas histórias – como a carta que o presidente entregou selada a Jango quando o enviou às pressas para o Sul recomendando “só abra amanhã” – e o dia seguinte era 24 de agosto de 1954. “Era uma cópia da carta-testamento.”

Com Janio ele fez uma viagem de Las Palmas a Londres e afirma: “A vassoura, a caspa, o sotaque, era tudo encenação. No navio ele estava muito bem vestido, cheirando a lavanda inglesa, inteligentíssimo e cativante”. Com JK, Joel esteve meses antes da morte no quilômetro 328 da Via Dutra, que ele não aceita. “Ninguém me convence que foi acidente.”

Nenhuma entrevista foi programada nem caiu do céu. “Repórter tem de ser chato, se não for chato não é repórter.” Joel visitava o poeta Manuel Bandeira pelo menos uma vez por semana. Suas conversas com Graciliano Ramos estavam destinadas a morrer ali mesmo, depois que o alagoano, sem dizer uma palavra e antes de ir embora, rasgou o conto que o titubeante repórter lhe apresentou para avaliação. Mas Joel insistiu e arrancou tantas palavras de um Graciliano que gastava poucas, a princípio áspero e duro, que no final até admitiu a Geneton que rasgar o seu conto “foi a crítica literária mais sucinta e silenciosa que já vi”. Era um elogio.

Pedido aos céus

Frustração, algumas, como a de ter sido engabelado pelo garçom de que Ernest Hemingway, sentado ali ao lado, detestava dar entrevistas. Joel bebeu um gole, tomou coragem e resolveu abordar o americano… mas antes foi ao banheiro. Na volta, Hemingway evaporou-se no restaurante. “Um tapa de Hemingway teria sido melhor para uma reportagem”, Joel concluiu.

Geneton pergunta ao socialista o que ele achou do comentário de Nelson Rodrigues dizendo que Marx era uma besta. “Eu diria que Nelson é uma besta.”

Quem faltou entrevistar?, Geneton continua com a bateria de perguntas. “Hitler, para perguntar ‘por que o senhor não insistiu mais na pintura?; o mundo teria um péssimo pintor mas não passaria por uma guerra’. Seria meu epitáfio, eu iria direto para a câmera de gás.”

Quem Joel não levaria para uma ilha deserta? “João Gilberto, muito menos com aquele violãozinho… aliás, levaria o João Gilberto e o deixaria lá, sem o violão.”

Qual a pauta que ficou por fazer? “Todas. Jornalista não deve dar nenhuma notícia por encerrada.” E ele cita várias que iam ficando pelo caminho (e agora já prescreveram, os culpados não podem mais ser punidos): Rubens Paiva assassinado em janeiro de 1971, Manuel Fiel Filho morto no Doi-Codi em janeiro de 1976, Vladimir Herzog “suicidado” no mesmo Doi-Codi um ano antes, o atentado do Riocentro que aconteceu a 30 de abril de 1981. Quem matou Zuzu Angel num desastre na saída do túnel Dois Irmãos, em abril de 1976, depois de uma peregrinação pelas embaixadas americanas ou correndo atrás de Henry Kissinger no Brasil para desmascarar o desaparecimento cinco anos antes do filho e integrante da luta armada Stuart Angel, que teve a boca amarrada ao cano de descarga de um carro em movimento? Quem traiu Lamarca, Marighela? “Geneton, já começamos uma série fantástica”, Joel se anima.

Atrelado ao teclado da máquina de escrever Olivetti laranja, a câmera de Geneton captou Joel naquela fúria que ele costumava escrever na redação, arrancando de Nelson Rodrigues o comentário: “Patético”.

>> “Qualquer atividade jornalística que não seja reportagem é um desperdício de tempo e energia.”

>> “Repórteres, saiam da redação, vão para a rua.”

>> “Repórter tem de ser humilde, não se discute com a notícia. Repórter não existe, o que existe é a notícia.”

>> “Paciência, persistência e sorte foi o que Herbert Matthews me respondeu quando perguntei sobre as qualidades de um repórter.”

>> “Ninguém deve se levar a sério, especialmente nós, jornalistas.”

>> “Brasília, capital do Brasil? Não, é Ceilândia.”

>> “Sacrilégio é encontrar uma imagem de Cristo no gabinete de um banqueiro.”

>> “Se o povo não tem coragem de ir contra a Mangueira nem o Flamengo…”

>> “Jornalismo é ver a banda passar, não é fazer parte da banda.”

As últimas reportagens de Joel foram publicadas na revista Manchete. Adolpho Bloch enviou Joel a Jerusalém recomendando que ele não se esquecesse de deixar um bilhetinho com um pedido no Muro das Lamentações. “Você será atendido”, garantiu. Na volta Bloch perguntou: “E o pedido, você fez?”. E Joel: “Fiz, pedi para você me dar aumento”

Prêmios e votos

Geneton e Joel produziram dois livros juntos pela Record, Hitler-Stalin, o pacto malditoe Nitroglicerina pura, em 1989 e 1996.

Agora Geneton salvou do incêndio e do esquecimento 20 anos de fitas K7 gravadas, imagens amadoras e profissionais, com o reconhecimento por ter aprendido tanto – e o nosso, por ele ter lançado essa garrafa ao mar.

O final do documentário é um apartamento vazio de documentos, de livros, e de Joel. As últimas palavras: “Estou morrendo, Geneton, estou morrendo”. E nos últimos três anos, a tristeza de ter perdido todos os amigos e de não sair de casa.

Autodidata, Joel Silveira largou a faculdade de Direito no primeiro ano e viveu 60 anos de Jornalismo que Geneton qualificou de literário, mas firme, leve, objetivo. Com o “jornalismo de autor” que Geneton compara a Paulo Francis, Joel brilhou nos anos 1940, o das grandes reportagens usadas pelos jornais para driblar a censura do Estado Novo. Trabalhou na Última Hora, no Estado de S.Paulo, no Diário de Notícias, no Correio da Manhã.

Publicou 40 livros, o último em 2003, A milésima segunda noite na Avenida Paulista e outras reportagens, na imperdível coleção “Jornalismo Literário” dirigida por Matinas Suzuki Jr. na Companhia das Letras. Coletou seis prêmios – o Esso, o Jabuti e o da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo entre eles.

Tentou e perdeu duas vezes uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, a segunda em 2001, pleiteando a vaga de Jorge Amado que Zélia Gattai ganhou com 32 votos. Joel perdeu feliz, dizia que só apresentou sua “anticandidatura” para tirar quatro votos de Zélia, “que não era ditadora para ser eleita por unanimidade como Getúlio, muito menos escritora”.

Morreu em agosto de 2007, aos 88 anos.

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[Norma Couri é jornalista]