Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Semiótica de Neymar

Sobre uma foto estampada em O Globo (27/6/2011): no momento do embarque, apoiado com a mão esquerda no balcão da companhia aérea, o jogador Neymar espeta o punho da direita no quadril, ao mesmo tempo em que abre ligeiramente o blazer escuro, deixando à mostra uma camiseta branca, encimada por um colar metálico com pequeno crucifixo. Na cabeça, um chapéu da cor do blazer. A franja que despenca sobre a testa é de cabelo aparentemente tingido e faz pendant com a boca aberta do jogador, olhos dirigidos para o lado como se ele próprio, em meio ao instantâneo no olhar do fotógrafo de jornal, estivesse flagrando algo de inesperado.

Não é todo dia que o leitor de jornal pode deparar-se com um flagrante tão significativo quando esse, captado pelo fotógrafo Michel Filho. Assim como a notícia no caso do texto, a imagem instantânea, e não aquela posada ou estudada, é a essência do fazer jornalístico. O instante capturado pela objetiva – portanto, a expressão de uma unidade temporal flagrada pela consciência – dá margem à construção, pelo senso comum, de outras narrativas, muito diferentes às vezes da interpretação oferecida pelo jornalista na legenda. É que, nessa fração de segundo captada, inexiste “tempo”, logo, ainda não há narrativa, e sim a sua latência, que fica a cargo do leitor.

À margem da cena

No limite, não é a verdade “nua e crua” da fotografia que nos mobiliza, mas o potencialnarrativo presente no conteúdo da imagem.

A foto em questão é, ao mesmo tempo, noticiosa e indicial.

A notícia é da ordem do discurso inteligível, por ser o relato de uma ocorrência da vida real que reclama do leitor uma interpretação como casus facti (caso de fato), em oposição a qualquer caso suposto ou imaginário (casus ficti). A legenda noticiosa da foto de Neymar simplesmente informa ao leitor que o jogador, estrela do Santos na Libertadores, ia se juntar à seleção brasileira para a disputa da Copa América na Argentina.

A fotografia, por outro lado (diferentemente da função simbólica e autônoma da imagem), é da ordem do índice e remete para além da literalidade do texto: ela nos diz que aquilo que vemos é também uma sinalização para algo ausente, mas importante, do tipo “onde há fumaça tem fogo”. A leitura do índice é um exercício instigante para o leitor de jornal, em especial nesta época em que o visual, em todas as suas modalidades, convoca para a pluralidade dos modos de ler, mobilizando recursos lógicos e sensíveis.

Um modo mais fácil de perceber isso é figurar que, às vezes, depois de uma bem sucedida conversa comum, pode não se saber se uma informação foi transmitida por palavras ou por tons e expressões faciais, que são propriamente indiciais. A palavra (ou signo), imprescindível à representação, é tanto da ordem do inteligível quanto do sensível, é consciência e corpo, que demandam o leitor na totalidade de sua vinculação social para que este produza a sua própria narrativa sobre o que está lendo ou vendo.

Há fotos que devem ser apenas vistas, e outras que devem ser lidas. Neste último caso está a foto de Neymar. Para começar, observe-se o seu braço direito levemente desengonçado, ao modo daquelas modelos na fotografia de moda com gestos extravagantes, como se fossem um artifício à margem da cena, uma teatralidade que atrai o olhar do espectador para a incongruência, fazendo-lhe ver que o pequeno absurdo da pose é, como a própria roupa que se quer vender, a forma estética de uma novidade – ou de uma mutação.

Ruínas urbanas

Há realmente uma mutação em curso. Aliada ao mercado, a tecnologia, enquanto forma hegemônica de consciência histórica, anuncia uma mutação antropológica, já visível nas novas gerações que nascem e desenvolvem outras aptidões neurológicas, dentre as quais uma pronunciada sensibilidade para com os comportamentos ligados à vertigem (substituição rápida de valores, ultrapasse dos códigos rígidos de conduta, gestualidade gerida pela moda, velocidade informacional) do audiovisual e das conexões eletrônicas. São fatores bastante diferentes daqueles que tradicionalmente orientavam a percepção e o julgamento.

Neymar é novíssima geração, por idade e atitude. Mas já se move na geografia do imaginário, na condição de grande estrela do futebol, esse misto de esporte e jogo cênico coletivo que tenta compensar a falta de mitos organizadores num país que vem destruindo o velho mito do paraíso terrestre e, apesar da expansão econômica, permanecendo em sua posição de um dos cinco mais desiguais do mundo. O futebol também permanece como uma espécie de mediação entre o sonho e a realidade nacional.

Não é mais, porém, a mesma mediação do passado. O futebol de agora tem mais antenas globais do que raízes nacionais. A sociedade tecnomercadológica traz consigo uma compulsão para o entretenimento que vai muito além do ludismo recreativo, na direção dos altos interesses corporativos em nível transnacional. Basta considerar a Copa do Mundo futebolística, organizada pela FIFA, que globalizou o esporte ao mesmo tempo em que pressionou os governos nacionais a dilapidarem recursos na construção de novos estádios para jogos e a financiarem hotéis luxuosos destinados a minorias privilegiadas.

Já se sabe que, sob o marketing da renovação de cidades e de bons resultados econômicos, esses eventos esportivos globais constituem na prática um prodigioso desperdício de recursos públicos e um foco de ruínas urbanas que são, no limite, a condição final dos complexos arquitetônicos de caríssima manutenção, tornados inúteis após a festa. Japão, Coréia do Sul, Portugal, Grécia e África do Sul que o digam.

Modelo poderoso

Neymar é estrela no interior dessa realidade plenamente capitalista do jogo, Entre ele e, digamos, Pelé, medeia a diferença do modo de construção das mitologias populares. Pelé era também um garoto quando despontou, mas a nação pôde assistir – e coletivamente identificar-se – à saga de sua ascensão ao pódio dos grandes atletas do gramado. Neymar já desponta rico e entronizado por mídia e corporações, o que não implica demérito nenhum para a sua magistral atuação em campo. A diferença é que Pelé é símbolo princeps de uma época em que se falava do jogador porque ele era bom, enquanto hoje, não raro, o jogador é bom porque a mídia fala dele.

Neymar é de fato bom – geométrico e preciso em seus passes. Mas ao já nascer (publicamente) atravessado pelos fluxos do espetáculo e do negócio futebolístico, ele se configura como uma semiose (quer dizer, como um processo de significação) narrada por essa “boca do mercado” que é a mídia. Ser “narrado” não significa adequar-se a um gênero literário qualquer (novela, conto, reportagem etc.) nem ser objeto de uma representação, e sim enquadrar-se na narratividade como um nível de organização sintático-semântica de qualquer texto, onde ocorrem processos ou transformações, modificações de atores, nexos entre ações e paixões.

A foto de Neymar pode ser lida pelo viés de uma narratividade que espelha um aspecto da modificação não apenas do estatuto profissional do jogador de futebol (ao mesmo tempo jogador e modelo publicitário) quanto da imagem pública do atleta, agora superfície semiótica porosa diante das flutuações identitárias, das crises de adolescência tardia, do consumo metrossexual etc.

Noutros tempos, aquele punho quebrado no quadril seria publicamente conotado como pouco viril, “mão de rã”, como se dizia no Nordeste. Agora não tem qualquer importância. É o fim da lógica disjuntiva das classificações sociais: Neymar não é isso ou aquilo, mas ora isso, ora aquilo. Talvez não sirva como mito, mas é modelo forte para moda e comportamento juvenis – um bom negócio midiático, portanto.

A propósito, o flagrante do fotógrafo Michel Filho foi tão preciso quanto um passe de Neymar.

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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]