Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A ciência que falta na TV está disponível online

(Foto: RedeComCiência)

Em 1950, quando a televisão chegou ao Brasil, havia apenas 200 aparelhos disponíveis para receber as imagens da primeira transmissão do país, pela TV Tupi. Sete décadas depois, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística aponta que, de todos os domicílios pesquisados em 2018, havia um aparelho de televisão em 96,8% deles e estima que 53 milhões de brasileiros têm televisores de tela fina e outros 23 milhões têm aparelhos de tubo. No Brasil, em alusão à Santa Clara de Assis, a “Padroeira da Televisão”, o Dia da Televisão é celebrado nesta terça, dia 11 de agosto.

Com todo este alcance, qual é a contribuição que a televisão está dando para a divulgação científica? Com a pandemia, tem sido grande. O novo coronavírus fez com que a ciência, que estava colocada meio de lado, passasse a ter um protagonismo sem precedentes. Infelizmente, chegou junto a urgente necessidade de alertar sobre pseudociência e fake news, contrapondo o noticiário paralelo, que não costuma ter a veracidade como diferencial, disseminando falácias principalmente pelo WhatsApp.

Muito se viu nas telas da TV, nos últimos cinco meses, um tempo dedicado a explicar que hidroxicloroquina e ivermectina não apresentam evidência de eficácia; a importância de orientar a sociedade sobre o quanto é necessário cumprir um rito científico para o desenvolvimento de uma vacina que, de fato, seja segura e eficaz; que é sim fundamental respeitar o distanciamento social e usar máscaras, dentre outras medidas de enfrentamento preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Para atrapalhar a qualidade da cobertura, houve também ruídos na comunicação oficial da OMS, por meio das coletivas de imprensa. Diretamente da Suíça, chegaram, de forma truncada, mensagens, por exemplo, sobre o risco de transmissão por uma pessoa assintomática.

A ciência que havia na TV antes da pandemia

É muito positivo ver a oportunidade que cientistas estão tendo de falar sobre a covid-19 nas emissoras de TV aberta e a cabo. Porém, vale lembrar do cenário que se apresentava antes da pandemia: matérias de ciência sem um espaço garantido nos telejornais e eram raras as matérias de maior fôlego, quase sempre de saúde. O maior expoente, Dráuzio Varella, tinha espaço restrito a algumas séries de matérias no Fantástico, da TV Globo. A covid-19 escancarou o quanto esse espaço era limitado.

O programa Bem Estar, exibido de 2011 a 2019, embora focado mais em saúde, era o maior respiro da ciência na TV e ajudava a impactar positivamente a vida dos telespectadores. Em meu doutorado, ao aplicar um questionário com pacientes diagnosticadas com câncer de mama, os dados mostraram que aumentou em 1,6 vez o risco de doença avançada dentre aquelas que não assistiam ao programa.

Produzido de 2014 a 2019, o Como Será? – também da TV Globo – mesclava ciência, educação e projetos sociais. O último episódio inédito foi exibido em 2 de dezembro e a equipe foi desfeita. Reprises vão ao ar no horário pouco convidativo das 05h50 às 06h50, aos sábados. Pouco, para um programa que é uma herança do Globo Ciência, Globo Ecologia, Globo Educação e Globo Universidade, todos extintos.

Nas outras emissoras de sinal aberto, também não se vê um espaço especialmente dedicado à ciência. Fica a nostalgia por O Mundo de Beakman, que teve 91 episódios divididos em quatro temporadas, exibidos no país pela TV Cultura. No papel do Professor Beakman estava o ator norte-americano Paul Zaloom. Gravidade, circulação sanguínea, fotossíntese, eletricidade, magnetismo, radiação, método científico e muitos outros temas aguçaram o interesse, principalmente de jovens, com uma linguagem divertida, acessível e, principalmente, com consultoria técnica. Há um canal dedicado aos vídeos do programa no YouTube.

Nos canais a cabo, a melhor notícia foi o retorno da série Cosmos. Em sua terceira temporada – Mundos Possíveis – a segunda com apresentação do astrofísico Neil deGrasse Tyson, reúne 13 episódios que estão sendo exibidos desde 9 de março no canal National Geographic. O programa volta uma década depois da segunda temporada e 40 anos depois da temporada inicial, originalmente exibida em 1980 pelo canal PBS, ter alçado o cientista Carl Sagan ao status de maior ícone da popularização das ciências. Os episódios com Carl Sagan, com dublagem em português, estão disponíveis no YouTube.

De qualquer forma, os temas da série documental Cosmos não são limitados a um conhecimento específico. O ideal seria que novas atrações expandissem esse universo para outras áreas do conhecimento. Na TV a cabo, o que mais se vê são programas que misturam entretenimento, documentário e reality show, com uma certa dose de sensacionalismo.

É o caso, por exemplo, do programa Quilos Mortais, que está com sua oitava temporada em exibição no Discovery Channel. São personagens que têm ao menos 600 libras (272 quilos), com indicação clínica para cirurgia bariátrica. O desejo é entrar na linha de cuidados de Younan Nowzaradan ou, simplesmente, Doutor Now. Nesta atração, a obesidade grau 3 (que é o IMC superior a 40) não é retratada apenas como uma doença. Há uma superexposição da rotina e, até mesmo, da intimidade do paciente e seus familiares, com os participantes sendo vistos como preguiçosos e culpados por estarem naquela condição física.

Embora o programa mostre os personagens com algum suporte de nutricionistas e psicólogos, esse acompanhamento não é de longo prazo e sim pontual. Pouco, considerando que os personagens são monitorados pela produção de TV durante doze meses. As histórias mostram o quanto a obesidade vai além do reflexo de uma compulsão alimentar. São inúmeros os gatilhos, dentre eles viver em um ambiente disfuncional, que pode ser de abuso sexual, maus tratos, abuso de drogas e abandono parental. Com seu recorte que privilegia o entretenimento, a saúde fica para escanteio e perde-se uma oportunidade de mostrar a real importância de um olhar multidisciplinar para a obesidade e a importância da cirurgia bariátrica, quando bem indicada. O teor de entretenimento fez até com que o Dr. Now, com formação qualificada, se tornasse um meme.

A ciência que podemos encontrar na nova TV

Os canais Manual do Mundo (com 13,8 milhões de inscritos), Nostalgia (13,1 milhões), Nerdologia (2,7 milhões), Física e Afins (146 mil), Nunca Vi 1 Cientista (56 mil), Dragões de Garagem (11,9 mil) são alguns dos exemplos de divulgação da ciência que estão disponíveis no YouTube. São produções que se esforçam em abordar a ciência com seriedade, sem negligenciar a qualidade do conteúdo, ao mesmo tempo que popularizam e disseminam um conhecimento inteligível. Isso é válido tanto para os assuntos mais áridos, como para aqueles que apenas despertam a curiosidade.

Canais de streaming, como a Netflix, também são opções de disseminação de ciência. Estreou recentemente a primeira temporada da série Mundo Mistério, apresentada por Felipe Castanhari, o youtuber responsável pelo canal Nostalgia. São oito episódios disponíveis. Além de Felipe, estão o zelador Betinho (Bruno Miranda) que dá o tom cômico assim como o homem-rato Lester de O Mundo de Beakman e a Dra. Thay (Lilian Regina) – a responsável pelo laboratório que homenageia a cientista Marie Curie.

O primeiro episódio, que retrata os mistérios do Triângulo das Bermudas, onde navios e aviões sumiram sem deixar vestígios ou destroços, começa com os mitos que já foram levantados sobre o tema, dentre eles os que apontam que eles tenham sido abduzidos por alienígenas. São trazidas, na sequência, as evidências baseadas em conhecimento científico. A região possui recifes de corais (que não eram facilmente observáveis por navios que não possuem a atual tecnologia de navegação), é sujeita a furacões, a vagalhões (ondas gigantes que surgem de maneira inesperada) e também a tsunamis (maremotos) e a uma falha geológica chamada buraco azul.

Nesta nova televisão, uma ampla gama de disseminação de ciência está disponível. E os cientistas, médicos e demais pesquisadores não precisam ser um youtuber ou um influenciador como Dráuzio Varella (que, inclusive, tem 2,5 milhões de inscritos em seu canal no YouTube) para contribuir com essa popularização. Ele pode atuar também nos bastidores, por exemplo, como consultor científico de uma série televisiva, de um programa documental, de um filme ou até mesmo de um núcleo de telenovela. A ciência não pode estar em cena apenas no meio acadêmico. Precisa romper a universidade e chegar a todos. Paralelamente, o jornalista, com devido alicerce de fontes que atuam baseadas em evidência, assim como o público que estará diante da tela, conseguem adquirir conhecimento e repertório científico, se tornando potenciais divulgadores.

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José de Moura Leite Netto é jornalista, vice-presidente da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência), doutor em Ciências pelo A.C.Camargo Cancer Center e diretor da SENSU Consultoria de Comunicação.