Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

Venezuela x Guiana: relações de poder no espaço mundial

“Não é preciso ter olhos abertos para ver o sol,

nem é preciso ter ouvidos afiados para ouvir o trovão.

Para ser vitorioso você precisa ver o que não está visível”. Sun Tzu

Essequibo, o conflito secular entre Venezuela e Guiana transcende suas fronteiras físicas, inserindo-se no tabuleiro do jogo estratégico global, como um novo cenário de relações de poder no espaço mundial.

Há quase dois séculos Venezuela e Guiana disputam o território de Essequibo. Entretanto, tal disputa tomou um novo rumo durante os últimos meses, quando o presidente venezuelano Nicolás Maduro ameaçou anexar tal área, referente a 70% do território guianense, ao seu país.

A Guiana, um dos menores países da América do Sul, encontra-se localizada entre o Suriname e a Venezuela. Batizada, na língua aruaque, de “ a terra das muitas águas”, dentre seus diversos rios tem o Essequibo, que se destaca como o maior do país, possuindo um enorme potencial hidrelétrico. São as terras situadas a oeste desse rio, as visadas para ocupação venezuelana.

Importante ressaltar que a região de Essequibo encontra-se em terrenos pré-cambrianos, mais particularmente nos escudos cristalinos, onde se encontra uma diversidade de recursos minerais como ouro, cobre, diamante e bauxita, com uma descoberta recente de petróleo na região. Além disso, a biodiversidade da fauna e flora da Floresta Amazônica ocupa aproximadamente 87% de seu território.

A demanda venezuelana por Essequibo teve início antes mesmo da independência da Guiana, quando o território ainda pertencia ao Império Britânico. A reivindicação do território é justificada, por parte da Venezuela, alegando-se que a sua área havia sido ocupada pelos espanhóis durante o período de colonização. Já da parte britânica, o Império compreendia que as terras espanholas tinham sido tomadas pelos holandeses, que perderam a sua posse em 1814 para os ingleses.

Visto que a copa das árvores não reconhece mapa, a ocupação tanto dos espanhóis quanto dos britânicos, ocorreu apenas no papel, dando origem a um embate de narrativas entre duas grandes potências.

A partir deste momento, acordos para a demarcação das fronteiras passaram a ser estabelecidos entre os países. O primeiro, datado de dois séculos atrás, ainda em 1897, resulta em um acordo de arbitragem internacional, por parte dos Estados Unidos, que assegurava a posição britânica acerca das fronteiras dos territórios.

Entretanto, como nada na geopolítica é simples, em 1949 há uma reviravolta em relação ao acordo. Com a suspeita de que tal documento seria imparcial, fruto de um conluio entre o Reino Unido e a Comissão de arbitragem, o conflito volta à tona, fazendo com que a Venezuela, em 1962, rejeite a validade do laudo ao se pronunciar na ONU.

Desde então nunca mais se entrou em acordo nessa disputa territorial. Em 1966, após uma tentativa de negociação frustrada, por meio do Acordo de Genebra, a Venezuela passou a ocupar militarmente o território guianense, piorando a relação entre os dois países. Em 1970, mais uma tentativa de aproximação foi feita através do Protocolo de Porto de Espanha fazendo o conflito ficar em “stand by” por 12 anos, porém ao final deste período a Venezuela se negou a renová-lo.

Atualmente, a disputa por Essequibo foi reaquecida a partir de 2015, quando a empresa estadunidense Exxon Mobil encontrou grandes reservas de petróleo no território. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), a exploração do hidrocarboneto possibilitou à Guiana um dos maiores índices de crescimento econômico do mundo, com um avanço de 62,3% de seu PIB em 2022 e uma projeção de 38,4% para este ano.

Com todo esse potencial, o interesse econômico sobre Essequibo é latente. Assim, no dia 3 de dezembro, Nicolás Maduro realizou um referendo de anexação da Guiana Essequiba finalizado, segundo dados do governo venezuelano, com 95% de aprovação. Porém, apesar da vitória no plebiscito, o governo de Maduro até o presente momento não deixou claro como será realizada a anexação do território.

Contudo, engana-se quem acredita que o conflito fica restrito somente aos interesses de dois países latinoamericanos. Diferentemente do mundo bipolar da Guerra Fria, pensar o espaço mundial no atual panorama geopolítico é muito mais complexo, visto que as multifacetas do mundo multipolar tornam necessário recorrer a vários instrumentos para uma reflexão da realidade que nos cerca.

O final da Guerra Fria e os consequentes avanços dos setores de informática e telecomunicações promoveram a integração econômica entre os mercados mundiais, contribuindo para que novos atores e cenários passassem a integrar a nova conjuntura política e econômica denominada de globalização. 

E qual seria o papel geopolítico da Venezuela nesse cenário?

Com o surgimento da Rússia e da China no atual tabuleiro geopolítico mundial, a Venezuela, que possui fortes investimentos, tanto no setor industrial como bélico, desses dois países, passou a ser na América do Sul uma forte aliada de resistência aos interesses aos EUA que sempre teve e tratou a América Latina como sua área de influência.

Assim, compreender o conflito atual de Essequibo, é também compreender o xadrez geopolítico global e todas as forças que o disputam. Logo, os interesses dos países na região possuem raízes mais profundas: desestabilizar os Estados Unidos, adquirindo para tal, duas abordagens:

a) Chinesa: A partir de sua tentativa de se projetar como grande potência global além da Ásia, a China, a partir de 2013, criou a Nova rota da seda (One Belt, One Road). O projeto consiste em realizar uma série de investimentos, nas áreas de infraestrutura e transporte, principalmente em economias emergentes, com a finalidade de conectar a Ásia com diversas regiões de importância geopolítica.

Na América Latina, sua área de influência já chega a 20 países que contam com nomes de peso como Argentina, Chile, Equador e Peru.

Não é novidade que China e Venezuela já possuem, há mais de duas décadas, uma parceria bastante estreita, porém, os investimentos chineses junto à Guiana tiveram um aumento do comércio bilateral na casa de 213% entre 2018 e 2022.

Diante desses números, é bem provável que Pequim mantenha-se neutra em um possível embate tomando a posição como manda o seu manual de política externa, de respeitar a soberania entre os países.

Ainda assim, é inegável que um conflito na região poderá contribuir para o enfraquecimento do plano Aulus – Acordo militar de segurança, realizado entre EUA, Reino Unido e Austrália com o objetivo de enfrentar a expansão militar chinesa na região do Indo-Pacífico.

b) Russa: Já para a Rússia, além dos interesses econômicos citados, também se encontra empenhada em ter seus interesses enraizados em uma área que sempre teve forte influência estadunidense. Fora isso, outro embate que se expressa é o desejo de Putim em “dar o troco” aos EUA perante o conflito no mar negro e a sua aliança com Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano.

Assim como Pequim pode ter em seu horizonte a tentativa de “atrapalhar” os investimentos bélicos no Plano Aulus, os russos também tentam criar um problema para os EUA, já que atualmente estão com sérias dificuldades de sustentar os dois conflitos nos quais estão envolvidos: Ucrânia e Israel. Fora isso, Putin pode estar contribuindo para atrapalhar a reeleição de Biden, o que não seria nada mal para os planos russos, já que Biden anunciou em 2022, “A maior sanção econômica à Rússia já vista na história. ”

Diante do exposto observa-se que o conflito possui raízes históricas, e na atualidade envolve o interesse de grandes potências que, por sua vez possuem interesses estratégicos na região. Desse modo, a compreensão da disputa territorial acerca de Essequibo envolve a compreensão de múltiplos fatores, que merecem atenção por parte da mídia que realiza a cobertura da disputa entre Guiana e Venezuela.

Bibliografia consultada

– FMI – Perspectivas econômicas : As Américas – out 2023.

– Decifrando a Terra / organizadores Wilson Teixeira – 2.ed – São Paulo:  

   Companhia editora Nacional, 2009.

– Duarte, Geraldine Marcelle Moreira Braga Rosas – Geopolítica das Guianas /Belo Horizonte, 2014

– FMI – Perspectivas econômicas : As Américas – out 2023.

– Igor Patrick. 2023. “Quais são os interesses da China na crise entre Guiana e Venezuela”. Folha de SP 08/12/2023

– Larissa dos Santos Zanin. 2023. A Nova Rota da Seda: As relações chinesas com a América do Sul. PUC Minas 28/06/2023

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Mauricio Alfredo é Mestre em Educação.