Quinta-feira, 6 de novembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1363

Javier Milei no centro das atenções

(Foto: Mariano Di Luch/Pexels)

Javier Milei acaba de passar pela prova de fogo da segunda metade de seu mandato, nesse 26 de outubro de 2025, com a renovação de metade da Câmara dos Deputados.

Ele se comprometeu a alterar drasticamente os serviços públicos, de saúde, de educação e de ajuda social, e a privatizar e demitir um número significativo de funcionários públicos e suspender os investimentos do Estado. Dois anos depois, tudo isso foi feito. Consciente disso, ofereceu aos seus eleitores sangue e lágrimas. Para, segundo a sua logorreia, lhes abrir o país de Canaã, o paraíso, onde corre leite e mel, sem desemprego, sem inflação e com muita criptomoeda.

Metade dos ministérios, considerados por ele como inúteis, foram suprimidos. As estradas e os edifícios públicos já não contam mais com manutenção. Os salários dos funcionários da educação e da saúde estão congelados desde 2023. A inflação, embora reduzida, está próxima de 30%, e os argentinos não conseguem mais pagar as contas. A ajuda social foi reduzida. A verdade dos preços foi imposta nos transportes. Apenas as estatísticas que foram reajustadas indicam uma redução da pobreza.

A rota do presidente continua fixada no meridiano de Viena e Chicago e seus economistas ultraliberais. Mais uma vez, nenhuma surpresa. Javier Milei anunciou seu credo durante a campanha eleitoral. Ele o confirmou no Fórum de Davos e em suas publicações. Somente o mercado, todo o mercado e nada além do mercado. Para tirar a Argentina da estagflação é preciso submetê-la ao “laisser faire” mais radical possível. Segundo seu credo, qualquer intervenção do Estado perturba, e faria e faz mais mal do que bem. A política social, disse ele, é antissocial. O melhor defensor dos assalariados é o patrão. Os impostos só servem para travar a economia e desperdiçar dinheiro.

Como resultado, Javier Milei conseguiu efetivamente travar a subida louca dos preços, que passou de 200% para 30%. Quanto ao resto, os eleitores da província de Buenos Aires, ou seja, 40% do total nacional, disseram-lhe “não” em 7 de setembro de 2025. Os candidatos presidenciais foram derrotados por uma diferença de 14 pontos em relação aos seus adversários.

A sua percepção não corresponde, evidentemente, às estatísticas oficiais. Um jornal econômico publicou, em 25 de setembro, uma manchete reveladora: “A pobreza diminuiu, mas os especialistas discutem a metodologia utilizada que foi usada para medi-la” [1]. O setor de obras públicas demitiu cerca de 50 mil funcionários. Os restaurantes estão em dificuldades por falta de clientes, que agora lotam os fast foods. A maioria dos argentinos está passando por dificuldades financeiras por falta de renda suficiente. Apenas os exportadores de soja e outros produtos alimentícios, os setores de mineração (lítio) e energia (gás e petróleo) estão em alta. Os poderosos deste mundo elogiaram um “homem corajoso”, que soube tomar as decisões certas, apesar do seu custo humano. Javier Milei foi capa de semanários antiestatais, defensores do mercado acima de tudo [2]. No entanto, ele não os convenceu. Os investimentos externos recebidos pela Argentina em 2024 caíram 53% em relação a 2023 [3]. A experiência dos anos Menem, peronista ultraliberal e favorável ao capital externo, terminou há mais de vinte anos em uma catástrofe econômica, financeira, social e política. No entanto, seu busto entrou na Casa Rosada com Javier Milei. Menem, em sua queda, provocou uma alternância eleitoral peronista, estatista e plena de reservas em relação ao FMI e aos capitais estrangeiros.

Resultado: o mercado desconfia, aplaude, mas guarda seus dólares. O sofrimento coletivo imposto ao país não permitiu a Javier Milei recuperar as divisas que lhe permitiriam pagar a dívida internacional acumulada por seus antecessores, radicais, peronistas e liberais. A tal ponto que Milei, em dois anos, foi obrigado a dobrar a dívida externa para cobrir os buracos herdados e aqueles que ele mesmo cavou, batendo uma vez mais na porta do FMI e depois na porta de Donald Trump, que precisava de aliados diplomáticos na América Latina [4]. Como cereja no topo do bolo, ele reduziu as receitas fiscais de um Estado já em dificuldades ao renunciar, até 30 de outubro, ou seja, durante o período eleitoral, à cobrança dos direitos aduaneiros pagos pelos exportadores de soja. 

Mas as dúvidas vão muito além. Dúvidas sobre a credibilidade do discurso anticasta e anticorrupção do personagem. Pouco tempo depois de sua entrada na Casa Rosada, seu nome foi citado em relação a um esquema de fraude com criptomoedas. Alguns meses depois, o nome de sua irmã e braço direito, Karina, foi publicamente citado em licitações envolvendo medicamentos para pessoas com deficiência, marcadas por propinas. Nas redes sociais, agora se canta, repetindo o refrão de Guantanamera, “Grande ladra, Karina, grande ladra” [5]. Um certo alívio na escalada corrompida foi assegurado por um dos cabeças da lista “militarista” nas eleições legislativas, José Luis Espert, que renunciou em 5 de outubro à sua candidatura, obrigado a reconhecer ter recebido 200 mil dólares de um doador ligado à lavagem de dinheiro sujo. Mais preocupante ainda é o perfil irracional do presidente, que incomoda até aqueles que se sentem mais seduzidos pelo discurso anti-impostos e anti-funcionários públicos do chefe de Estado argentino.

Sua defesa canina da supremacia exclusiva do mercado não é bem aceita. O bastão presidencial que ele quis segurar no dia de sua posse foi decorado com as cabeças de seus quatro cães vivos e com a do falecido Conan. Ele dedicou uma de suas obras baseadas na razão econômica ultraliberal, “pelo amor incondicional deles”, aos seus quatro cães [6]. Eles ocupam um lugar protocolar e midiático ao seu lado. Por exemplo, ele os apresentou ao embaixador da França no dia 30 de junho. Cada um deles leva o nome de um mestre da escola de Chicago: Milton (Friedman), Murray (Rothbard); Robert; Lucas (Robert Lucas); esses quatro amigos do homem são clones de Conan (o bárbaro), falecido em 2017 [7], com quem o presidente se comunicaria graças à mediação de uma especialista em psicologia animal, viva ou falecida, a veterinária médium Celia Liliana Melamed [8]. Resta, finalmente, sua fascinação por números e nomes, que talvez seja a origem de sua osmose espiritual com o judaísmo em sua versão habad-lubavitch. Com sua proximidade com a economia, ele cita a Bíblia ocasionalmente para apoiar seus argumentos, mas também com uma proximidade emocional, como observado durante uma de suas visitas a Israel, onde chorou em Jerusalém diante do Muro das Lamentações.

A Argentina, independentemente do resultado das eleições, embora “Trump, ao anunciar um empréstimo de 20 bilhões de dólares, tenha ‘salvo Milei in extremis’” [9], se encontra diante do Muro das Lamentações, precisando urgentemente de conselhos salvadores, talvez de Conan. Em setembro, o Congresso argentino aproveitou a oportunidade e rejeitou vários projetos presidenciais antissociais. Em 25 de setembro, 53,6% dos argentinos, de acordo com uma pesquisa, desaprovavam a gestão do presidente Milei [10]. A censura é ainda mais contundente em uma pesquisa de 4 de outubro: 64,7% dos entrevistados condenam a ação do presidente Milei [11]. Incapaz de convencer, o chefe da Argentina, em 6 de outubro, subiu ao palco da Movistar Arena. Lá, ele gritou as letras de “Rock do Gato”, “Não me arrependo desse amor” e, em homenagem a Netanyahu, “Hava Nagila”, intercalando entre as músicas cantadas sua fé no método Coué: “Estamos na metade do caminho, eles ganharam uma recuperação, não a batalha”.

 Texto publicado originalmente em francês, em 07 de outubro de 2025 no site Fondation Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original: “Législatives argentines du 26 octobre : Javier Milei, le président qui a doublé la dette, sur la sellette”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/129672. Tradução de Andrei Cezar da Silva e revisão de Luzmara Curcino.

Notas

[1] Ambito financiero, 25 de setembro de 2025, artigo de Santiago Reina. 

[2] Na França, por exemplo, a revista Le Point publicou em 17 de junho de 2025 a manchete “Javier Milei, as sete provas de seu sucesso econômico na Argentina”; e o Le Journal du Dimanche, em 15 de setembro de 2025, publicou a manchete “Milei e a coragem da ruptura: uma lição para a França”. 

[3] Em Documento da CEPAL sobre o investimento estrangeiro na América Latina em 2024, Inversão Estrangeira Direta, Santiago, 2025. 

[4] A dívida era de US$ 44 bilhões em 10 de dezembro de 2023. Em abril, o FMI concedeu um empréstimo de US$ 20 bilhões, aos quais devem ser acrescentados outros US$ 20 bilhões prometidos por Washington. 

[5] Entre vários meios de comunicação, Tiempo Argentino, “Karina é Alta coimera”, 1º de setembro de 2025.

[6] Javier Milei, Capitalismo, Socialismo, y la trampa neoclasica, Buenos Aires, Planeta, 2024, p. 5.

[7] Clonados nos Estados Unidos por um laboratório com um nome predestinado, “PerPETuate”.

[8] Dentre várias mídias, Perfil, 26 de abril de 2024. 

9] Éric Albert, “Quando Trump salva Milei in extremis”, Le Monde, 24 de setembro de 2025, p. 16.

[10] Agustín Alvarez Rey, a imagem de Javier Milei continua em baixa, enquanto La Libertad Avanza se mantém competitivo”, pesquisa Management & FIT, 30 de setembro de 2025.

[11] Ambito financiero, 25 de setembro de 2025, artigo de Santiago Reina. 

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Jean Jacques Kourliandsky é Diretor do “Observatório da América Latina” junto à Fundação Jean Jaurès, na França, especialista em análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014). Colabora frequentemente com o “Observatório da Imprensa”, no Brasil, em parceria com o Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) e com o Laboratório de Estudos da Leitura (LIRE), ambos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).