Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Doutor em jornalismo

Um dos princípios que tentei seguir com rigor nos dois anos em que exerci o cargo de ombudsman da Folha de S.Paulo (de 2008 a 2010) foi o de ser o mais impessoal possível.

Citei minimamente nomes individuais de jornalistas ao fazer críticas por entender que jornalismo é o resultado de trabalho coletivo, em que cada um certamente tem responsabilidades específicas, mas ninguém deve receber solitariamente créditos ou débitos.

Em 13 de dezembro de 2009, abri uma exceção a tal regra autoimposta. É que duas semanas antes, em 24 de outubro, fizera 50 anos a publicação da primeira matéria assinada naquele jornal por Julio Abramczyk, o que lhe havia dado a distinção de ser o jornalista que por mais tempo trabalhava em um só veículo de comunicação sem interrupções.

Além disso, Abramczyk também obtinha naquela data a condição de pessoa que por mais tempo escreveu na Folha. Um colega seu, Domingos Ferreira Alves, que havia morrido em plena atividade em 2008, ficara mais tempo nas empresas do grupo Folha (54 anos seguidos), mas em vários veículos da casa e muito mais em funções de edição do que de repórter ou redator. Abramczyk é só da Folha, agora há 52 anos, e sempre escrevendo.

Não é pouca coisa. Ainda mais quando se leva em conta que o jornalista em questão também é médico, cardiologista respeitado por seus pares no Brasil e outros países, e foi por muito tempo diretor clínico de um dos maiores e melhores hospitais de São Paulo (o Santa Catarina).

Prova de fogo

Muita gente acha que a prática do jornalismo coloca uma pessoa perto do ápice da escala de valor profissional na sociedade. Mas a medicina, sem dúvida, está acima do jornalismo nessa hierarquia, tanto do ponto de vista de prestígio quanto no de recompensa material.

Que Abramczyk nunca tenha desistido das redações, em que se iniciou quando era estudante (como revisor e depois repórter de O Tempo, sob o comando do legendário Hermínio Sachetta), mesmo depois de se ter se saído com grande êxito em consultórios e clínicas, fala muito sobre sua paixão pela profissão e pelo jornal em que se fixou.

Esse amor intenso se revela não apenas pela constância e resistência com que ele vem exercendo seu trabalho ao longo de tanto tempo. Há muito que ele tem sua coluna semanal, “Plantão Médico”, a qual já seria suficiente para manter seu nome e prestígio como jornalista.

Mas uma coluna semanal é pouco para o entusiasmo juvenil que nunca deixou de existir em Abramczyk. A alma de repórter recusa a aposentadoria e até a simples comodidade de um único texto por semana.

Então, ele escreve sempre que pode sobre os assuntos do dia a dia que envolvam aspectos médicos e, quando esses rareiam, faz viagens pelo mundo e conta aos leitores do caderno de turismo tudo sobre os lugares que visita. Até para o suplemento infantil, a “Folhinha”, ele contribuiu.

Não bastasse isso, Abramczyk foi ainda um pioneiro e se mantém até agora como expoente da teorização sobre o jornalismo científico no Brasil e na América luso-hispânica e de sua organização como especialidade, tendo ajudado vitalmente a criar e solidificar instituições como a Associação Brasileira de Jornalismo Científico e diversos encontros internacionais sobre o tema, ao lado de José Marques de Melo, Manuel Calvo Hernando, Luiz Ramiro Beltrán, Luis Moreno Gomes, Perseu Abramo, José Hamilton Ribeiro e o patriarca do grupo, José Reis, entre outros.

Em diversos congressos, seminários e livros, Abramczyk apresentou sua contribuição, fundamental, para construir um referencial teórico para o jornalismo científico nas Américas e na península ibérica.

A qualidade de seu trabalho jornalístico vem sendo reconhecida há mais de cinco décadas não apenas pelos colegas, superiores nas redações e (mais importante de todos) seus leitores, mas também por meio de prêmios de mérito inegável, como o Esso, o José Reis de Divulgação Científica (concedido pelo CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), o Governador do Estado (de São Paulo) e o da Associação Brasileira de Divulgação Científica.

O Prêmio Esso, o mais importante do jornalismo brasileiro, equivalente ao Pulitzer nos EUA, veio em 1970, pela primeira reportagem publicada a respeito de uma técnica então revolucionária, a cirurgia de ponte de safena, para tratar vítimas de infarto agudo do miocárdio, hoje procedimento corriqueiro. Esse texto histórico é um dos que está reproduzido neste livro.

Por tudo isso, pareceu natural aos editores da Publifolha reunir num volume alguns dos mais de 2.500 textos que Julio Abramczyk publicou na Folha de S.Paulo desde 1960. Fiquei honrado por ter sido escolhido para coordenar esta edição durante o período de quarentena que cumpri no segundo semestre de 2010, após ter deixado o cargo de ombudsman.

Abramczyk e eu temos tido uma relação profissional e pessoal muito próxima desde que nos conhecemos, quando ele estava prestes a comemorar o seu Jubileu de Prata na Folha e eu entrava no jornal.

Aproximamo-nos especialmente durante a dura jornada da agonia do presidente eleito do Brasil Tancredo Neves, que teve de ser operado na véspera de sua posse, afinal jamais realizada devido às complicações médicas que se seguiram à cirurgia da noite de 14 de março de 1985.

Aquele foi um teste de fogo para o jornal e sua equipe, da qual eu fazia parte como secretário de Redação, como será detalhado em um dos capítulos deste livro. E a presença segura, tranquilizadora, confiante, do redator médico ao lado de seus quase todos muito jovens companheiros foi um fator decisivo para o sucesso de que se revestiu a empreitada.

Faro aguçado

Para concretizar o projeto deste livro, resolvemos dividir os trabalhos de Abramczyk em cinco grandes áreas temáticas: jornalismo científico, saúde pública, doenças do coração, saúde pessoal e doenças de personalidades. Ele escreveu sobre muitos mais assuntos diversos. Mas seria impossível agrupá-los todos num volume com as limitações deste.

Em seguida, fizemos uma seleção dos textos dentro de cada um desses domínios que tivessem mais representatividade, tentando incluir os de quase todas as décadas de trabalho de Abramczyk.

Feita a difícil escolha, mandamos cada lote de matérias para um especialista no jornalismo científico para que eles as lessem e produzissem uma curta avaliação a respeito desse conteúdo.

Assim, o professor Célio da Cunha, doutor em educação, professor da Universidade de Brasília, consultor da Unesco, escreve sobre os textos de Abramczyk a respeito de jornalismo científico.

Segundo Cunha, uma das principais características da teoria de jornalismo científico que emerge do trabalho de Abramczyk sobre o tema é sua “sólida dimensão ética e de respeito aos leitores”. Para Cunha, “integra a vertente ética e política de suas ideias, a independência de pensamento”, que se ressalta nos alertas que fez em seus textos quanto aos perigos de o jornalismo ceder acriticamente a estratégias de marketing da indústria médica.

O jornalista Marcelo Leite, doutor em ciências sociais, um dos principais nomes da geração sucessora da de Abramczyk no jornalismo científico na Folhae no Brasil, vencedor como ele dos prêmios Esso e José Reis, foi encarregado de comentar os textos do autor sobre saúde pública.

Leite destaca como “o talento para o jornalismo e para a reportagem, surpreendentemente, já apareciam bem no princípio da colaboração do jovem repórter e estudante de Medicina com a Folha, em fevereiro de 1961”, com uma série de matérias a partir de uma extensa viagem de Abramczyk à Amazônia e como em sua carreira, ele conseguiu “testemunhar e relatar fatos e processos de importância histórica”, por exemplo – em 1977 – o esforço bem sucedido de Abrahão Rotberg “para superar o estigma do tratamento da lepra e acabar com o confinamento dos doentes nos famigerados leprosários”.

Outra jornalista que mantém o padrão de alta qualidade que José Reis e Julio Abramczyk determinaram para o jornalismo científico na Folha é Claudia Collucci, mestre em história da ciência, que foi encarregada de analisar os textos selecionados sobre doenças do coração para este livro.

Ela dá, com toda razão, especial destaque à reportagem que rendeu ao autor o prêmio Esso de 1970. O jornal deu manchete principal de primeira página mais duas páginas inteiras para o relato do cardiologista Abramczyk sobre a cirurgia de ponte de safena para casos de infarto do miocárdio, que era uma iniciativa inédita de médicos brasileiros.

Mas essa não foi a única reportagem histórica sobre procedimentos para problemas cardíacos na carreira de Abramczyk, como Collucci destaca: “A lista de contribuições do dr. Julio é infindável. Por meio de seus relatos, os avanços da cardiologia nacional e internacional saíram do hermético universo acadêmico para as grandes massas, tornando acessível o que por, natureza, é difícil e complexo”.

Tão veterano como Abramczyck, o jornalista Almyr Gajardoni, que foi – entre outras distinções – o fundador de um dos mais bem sucedidos veículos de divulgação científica da imprensa brasileira (a revista Superinteressante), recebeu o encargo de comentar as matérias sobre saúde pessoal.

Gajardoni diz que “uma delicada questão atormenta quem se dedica ao jornalismo e é, ao mesmo tempo, titular de outra especialização profissional: quem escreve? No caso do Júlio Abramczyk, essa dúvida não existe: é sempre o jornalista, naturalmente com a segurança de quem tem sólida cultura médica”.

A mim, coube discutir as reportagens, artigos e colunas de Julio Abramczyk referentes a doenças de personalidades, com justa primazia para a cobertura da enfermidade de Tancredo Neves.

Um quarto de século depois daqueles eventos dramáticos, impressiona como no dia seguinte ao da primeira cirurgia do presidente eleito, o redator médico da Folhajá antecipava, com base apenas no diagnóstico dos fiapos de informação oficial divulgados, que Tancredo tinha provavelmente tido um tumor, não apenas uma diverticulite, como havia sido anunciado.

Conhecimento e interesse público

Nos 52 anos de exercício da profissão só na Folha, Julio Abramczyk viu a importância do noticiário sobre saúde crescer muito na imprensa brasileira. Esta é seguramente uma das especialidades do jornalismo, que hoje em dia mais interesse desperta no público.

Tal proeminência aumenta muito a responsabilidade dos jornalistas que tratam do assunto, alvos de esforços progressivos de tentativas de instrumentalização por parte de representantes da indústria da saúde (em todos os seus ramos, dos laboratórios farmacêuticos aos hospitais) mal intencionados e inescrupulosos.

Uma das maiores contribuições de Julio Abramczyk para o jornalismo brasileiro foi o modelo de virtude que ele estabeleceu no trato desses temas complexos e muitas vezes controvertidos, em que interesses materiais, vaidades científicas e egos superdimensionados entram em choque constante e em relação aos quais o jornalista tem de agir com isenção e profissionalismo.

Ao reunir conhecimento técnico e aguçada consciência de interesse público, Abramczyc colocou para os seus contemporâneos e sucessores a barra da qualidade em um ponto bastante elevado, o que tem exigido deles esforço considerável para não rebaixá-la.

Quem lucra com isso é, acima de tudo, a sociedade brasileira, que pode desfrutar de um jornalismo científico de bom nível, como poucos países de porte similar ao Brasil têm.

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[Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista]