Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A saga dos Lacerda

Entre as poucas lembranças que o escritor Rodrigo Lacerda, de 44 anos, guarda do avô, o jornalista e político Carlos Lacerda (1914-1977), está a de seu enterro, no cemitério de São João Batista, no Rio. Aos oito anos, sem nunca ter visto o avô em atividade, Rodrigo espantou-se com o tumulto de lacerdistas na cerimônia fúnebre. Não fazia ideia das paixões causadas por Carlos, que teve direitos políticos cassados pela ditadura antes de o neto nascer. A imagem ficou num canto da memória do autor até 2010, quando, convidado pela “Ilustríssima”, na Folha, a descrever o momento, criou o conto “Política”, narrado pelo defunto, à moda de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

O texto gerou um convite da Companhia das Letras para o escritor fazer um retrato biográfico do avô, figura inflamada que, dos anos 1930 aos 1960, rompeu com esquerda e direita, passando de comunista a anticomunista e de articulador do golpe de 64 a um de seus grandes críticos.

A República das Abelhas chega agora às livrarias, no ano que antecede o centenário de Carlos Lacerda. O título se refere a um “frenesi em volta da colmeia”, metáfora sobre os vários grupos políticos de olho no poder na primeira metade do século 20. Em 520 páginas, Carlos Lacerda relembra o avô, o juiz Sebastião; o pai, o deputado federal Maurício; os tios, Paulo e Fernando, comunistas; e sua própria trajetória, na qual se destaca a oposição ferina a Getúlio Vargas (1882-1954).

História sem rigor

Rodrigo leu tudo sobre Carlos, incluindo a imensa biografia feita pelo americano John Watson Foster Dulles, cartas, discursos e sua produção literária – o político escreveu peças, contos e memórias; foi tradutor e editor. Por “falta de opção melhor”, chama o resultado de romance histórico. “Tem biografia e é romance, mas não só; é história, mas sem rigor.”

O livro é narrado em primeira pessoa. “O distanciamento de um historiador era impossível, já que sou neto. Tentei tirar partido disso”, diz Rodrigo, premiado por romances como Outra Vida. Essa opção o deixou livre para recorrer a uma visão parcial, impregnada pelas crenças do avô. Mas o olhar pós-morte traz um político mais comedido do que aquele que ficou famoso pela veemência. “É ele fora do jogo lembrando o campeonato”, explica. A reflexão ficcional póstuma permitiu ao autor incluir conclusões próprias, como a de que a ruptura do Partido Comunista do Brasil com Lacerda, em 1939, teve a ver com uma estratégia dos dirigentes para queimar seu tio Fernando, que media forças com Luís Carlos Prestes.

Leitores sentirão falta de duas passagens notórias da vida do político: sua atuação como governador da Guanabara (1960-1965) e sua ligação com o golpe de 64. Há um plano da editora de publicar um segundo livro. Rodrigo não se compromete. “A essência da visão de meu avô se consolida até os anos 1950. Com isso, deixei de fora o melhor e o pior da vida política dele. Pode ser que continue, mas, por ora, voltarei a outros trabalhos.”

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Obra faz bons retratos, mas falha em narração

Marcelo Coelho (*)

Não é um estudo biográfico, não chega a ser um romance, e está um bocado longe de ser literatura. Ainda assim, há muita coisa interessante em A República das Abelhas, livro em que Rodrigo Lacerda trata de seu avô, o político e jornalista Carlos Lacerda (1914-1977).

O célebre adversário de Vargas, Juscelino e João Goulart não chega a ser, na verdade, o personagem mais marcante destas cinco centenas de páginas. Talvez por uma falha essencial no projeto do autor – tento apontá-la daqui a pouco –, os retratos biográficos mais bem acabados do livro terminam sendo os de outros dois políticos.

A saber, Maurício de Lacerda e Sebastião de Lacerda, respectivamente pai e avô do “biografado”. Sebastião foi um modesto republicano no interior fluminense, que se tornou deputado e depois ministro do Supremo. Vestido quase sempre de preto, era capaz de atitudes hoje inconcebíveis de correção moral.

Levava a coisa a tal ponto que, com o filho Paulo prestes a se casar com uma moça rica, foi visitar a família da noiva e achou necessário esclarecer que o filho passara a noite anterior fora de casa. “Só me resta”, declarou para a mãe da noiva, “desmanchar o noivado.” A jovem era herdeira de uma fábrica de chocolates, a Bhering, e os Lacerda não tinham um tostão. Os protestos foram muitos e o casamento afinal se fez, com trágicos resultados.

Enquanto Paulo de Lacerda casava com a moça rica, para depois dedicar-se à militância comunista, ser torturado e afundar na demência da sífilis e do alcoolismo, seu irmão Maurício teve uma vida política mais brilhante. Simpático aos socialistas europeus e aos movimentos sindicais que chegavam ao Brasil, Maurício, pai de Carlos, foi deputado federal nos anos 1910 e teve participação importante na Revolução de 1930. Foi ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, depois, nos 1940, à anticomunista União Democrática Nacional (UDN).

A passagem sobre seu discurso para a multidão da capital federal, no dia do enterro de João Pessoa, é uma das mais bem realizadas de A República das Abelhas. João Pessoa, Virgílio de Mello Franco, Siqueira Campos, Osvaldo Aranha, Batista Luzardo: todos esses nomes, de que tomamos vago conhecimento nos livros de história, ganham rosto e significação moral complexa no livro de Rodrigo Lacerda. A razão para isso é que o autor, desistindo de artifícios literários mais ambiciosos, optou por narrar os fatos em terceira pessoa – no que seria o ponto de vista de Carlos Lacerda a partir do que soube, leu ou testemunhou –, sem economizar detalhes.

O período anterior à Revolução de 1930, com o surgimento do tenentismo, as hesitações de Luís Carlos Prestes, as tentativas de Maurício de Lacerda para seduzi-lo e as alianças em torno de Getúlio, consome parte significativa do trabalho do autor, que se imagina exaustivo.

Já quando se volta ao próprio Carlos Lacerda, o livro se perde por várias razões. A principal é que Rodrigo optou por narrar na primeira pessoa, imaginando “no estilo de Memórias Póstumas de Brás Cubas –, um defunto contando sua história, enquanto nota a própria decomposição dentro do túmulo”.

O procedimento faz sentido no romance de Machado de Assis, na medida em que o narrador é um ironista, alguém disposto a ver o mundo com máximo distanciamento e corrosão. Nada mais distante da personalidade de Carlos Lacerda, apaixonado pelo poder e pelas causas do seu momento.

Visão estratégica

Como é difícil ter uma visão equilibrada, para não dizer positiva, de um político parcial como Carlos Lacerda, a opção do autor parece estratégica à primeira vista. O próprio Lacerda irá justificar-se, contar sua visão dos fatos, e poucos saberiam defender-se melhor do que ele próprio.

O problema é que o texto não está à altura do personagem. Em vez de um Carlos Lacerda plausível, encontramos parágrafos e mais parágrafos que parecem tirados de uma apostila de história. Pelo que se sabe, Lacerda era muito melhor orador do que escritor. Mesmo assim, seria melhor evitar que o personagem se entregasse a didatismos tão frequentes. “O setor industrial”, diz o narrador, “continuava precisando de trabalhadores, de preferência treinados, e também no setor agrícola crescera a demanda por novos contingentes de mão de obra.”

Referências à “oligarquia”, às “elites”, juntam-se a anacronismos (será que alguém falava em “multinacionais” na década de 1920?) e clichês. Opiniões “diametralmente opostas”, “vida desregrada”, “carreira meteórica”, os exemplos se sucedem.

Tentativas de formalizar a linguagem para lhe dar aparência “antiga” fracassam de modo constrangedor. “Porei-me bonito”, diz o exilado Prestes a um interlocutor, “para, mais tarde, irmos tomar um aperitivo na melhor confeitaria de Santa Fé.” Porei-me? Não se trata de implicância gramatical ou estilística. Os personagens perdem vida, a narração se despersonaliza, tudo fica com jeito de lição de casa, de colagem, quando o texto se arrasta com tais dificuldades.

O cansaço toma conta do autor, que convenientemente encerra o livro em 1954, antes que o golpismo de Carlos Lacerda, contra Juscelino e Goulart, viesse à tona com máxima histeria.

(*) Marcelo Coelho é colunista da Folha de S.Paulo

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Raquel Cozer, da Folha de S.Paulo