Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Reportagem expõe a espionagem feita pelos EUA

A esquisita franja de Michelle Obama e a cantoria estridente de Beyoncé foram destaque na festa de posse do segundo mandato de Barack Obama em 21 de janeiro do ano passado. Naquele mesmo dia, houve mais um ataque de drone no Iêmen, o terceiro em três dias – sem alarde nem contestação.

Era mais um capítulo da ação do governo de Washington, que tem ignorado arcabouços jurídicos e convenções internacionais, promovendo assassinatos – inclusive de cidadãos americanos – sem prestar contas a ninguém e desrespeitando a soberania das nações.

Esse é o tema do jornalista Jeremy Scahill em Guerras Sujas, minuciosa reportagem que expõe as entranhas da rotina de violência, perseguições, violações de direitos, espionagem conduzida pelos governos americanos.

“Esta é a história de como os Estados Unidos adotaram o assassinato como parte essencial de sua política de segurança nacional”, define o escritor logo de início. De fato, numa torrente de casos, fica escancarada a doutrina da guerra sem limites alardeada após os ataques de 11 de Setembro.

Numa longuíssima narrativa cheia de detalhes, Scahill reúne informações de bastidores, discursos oficiais, visões de especialistas e entrevistas com ex-agentes de espionagem.

Políticos norte-americanos e figuras dos confins do Paquistão, Afeganistão, Somália, Iêmen e Etiópia são personagens do livro, que faz um recorte incisivo em uma nova forma tenebrosa de guerra.

Essa estratégia, mostra o jornalista, vem desde o final do governo Clinton, quando os EUA começaram a operar drones no Afeganistão, a partir de uma base secreta no Uzbequistão.

Depois, segundo ele, no governo Bush (pai), foram plantadas as sementes do uso de empresas privadas para travar as guerras do país – simplesmente uma forma de burlar fiscalizações, sigilos e prestações públicas de contas a respeito de conflitos, declarados ou não.

Programa de assassinatos

Especialista no tema, Scahill é autor de Blackwater (2007), que destrincha a ascensão da empresa de mercenários de guerra com conexões com o poder estadunidense e acusada de massacre de civis no Iraque. Hoje a companhia se chama Academi e foi contratada pelo governo brasileiro para treinar policiais que vão atuar na Copa.

No seu novo livro – base do documentário homônimo indicado ao Oscar neste ano e sem data de exibição no Brasil – o jornalista fala de prisões secretas americanas em pelo menos oito países pelo mundo, onde interrogatórios e torturas acontecem ao arrepio da lei, sem advogados e assistência da Cruz Vermelha.

Scahill conta como o governo dos EUA passou a adotar a política de “capturar suspeitos de terrorismo no mundo inteiro sem respeitar tratados bilaterais de extradição ou convenções internacionais”. Para ele, Washington construiu uma “cortina de ferro” em torno dessas operações que constituem “a mais eficiente máquina de morte e captura” do planeta.

O relato traz o avanço no uso dos drones e percorre as guerras no Iraque e no Afeganistão, conflitos na África, a morte de Bin Laden. Observa que a invasão que derrubou Saddam Hussein acabou atraindo militantes da al-Qaida ao país. “Apesar de tudo o que se falava sobre as profundas divergências sectárias no Iraque, a ocupação americana estava, na verdade, unindo os iraquianos, tanto os xiitas quanto os sunitas, na causa comum.”

Scahill afirma que Obama, contrariando sua própria retórica quando candidato, aprofundou a política herdada de Bush filho. Diz que o Nobel da Paz e sua equipe construíram “a infraestrutura de um programa americano formal de assassinatos”.

O autor mescla análise e reportagem, com histórias de vítimas desse modelo. Como a do menino norte-americano Abdulrahman Awlaki, que estendeu uma toalha no chão para saborear um churrasco com seus primos na noite de 14 de outubro de 2011 numa cidade do Iêmen. Um drone o estraçalhou. Sem acusação, julgamento, explicação. Tinha 16 anos e ainda chorava a morte do pai, assassinado duas semanas antes. Casos assim, que induzem a mais violência, fazem o repórter perguntar: “Como se acaba com uma guerra como essa?”

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Eleonora de Lucena, da Folha de S.Paulo