Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A ficção do autógrafo

“Parecem inscrições rupestres”, constatou Noemi Jaffe, 52, dias atrás, ao olhar para a dedicatória que acabara de anotar na capa de seu livro “Comum de Dois”. Com boa vontade, era possível ler “para o Samir, com carinho”.

Munida de uma caneta stylus, feita para telas sensíveis ao toque, e de um iPad, a escritora protagonizava, na Livraria Cultura, em São Paulo, uma rara noite de autógrafos digitais. Seu recente livro de contos saiu apenas como e-book, pelo selo e-galaxia.

A dificuldade em escrever na tela de um tablet é o menor dos dramas envolvendo a ideia de autografar livros digitais, que ganha corpo nos Estados Unidos, onde os e-books correspondem a mais de 20% do total da venda de livros no país –por aqui, não chegam a 5% do mercado.

Pode parecer detalhe, mas dedicatórias têm valor comercial e afetivo. Para o leitor, é a prova inestimável de que esteve com o autor que admira. Para quem escreve, noites de autógrafos garantem livros vendidos. Autores independentes não raro vendem nessas ocasiões suas únicas cópias, a amigos e familiares.

Atenta a esse cenário, em setembro de 2013 a Apple patenteou um sistema que permitiria a autores autografar e-books vendidos por sua loja virtual, a Appstore. Ainda não pôs a ideia em prática.

A questão é que, para os autógrafos poderem ser inseridos nos e-books, é preciso que estes não tenham travas de segurança (o DRM, sigla de Digital Rights Management), que impedem cópias ilegais. Quase nenhuma loja vende sem essa trava.

Por aqui, a e-galaxia, uma das únicas editoras com noites de autógrafos digitais, recorreu ao aplicativo Skitch Notes. Com ele, é possível autografar a capa –mas uma capa de mentirinha, que não pode ser agregada ao e-book. O autor assina em seu tablet e envia por e-mail ao leitor.

“É uma espécie de souvenir”, diz o editor Tiago Ferro. “O leitor pode compartilhar nas redes sociais”, comenta.

A desvantagem é que ninguém garante que quem ganhou o autógrafo comprará o livro. E a ideia de um autógrafo avulso na rede não é exatamente animadora.

“Vai aparecer aqui no meu e-book?”, quis saber uma leitora, na noite de autógrafos de Noemi. “Hm. Não. Vai aparecer só uma capa. Solta. No seu e-mail”, respondeu a autora, cheia de sinceridade.

Degustação

Um ano atrás, a e-galaxia fez uma parceria com a americana Autography, precursora nesse mercado, para o lançamento de “The Book Is on the Tablet”, de Alberto Villas. Na ocasião, autógrafos eram inseridos em uma “degustação”, com parte do e-book.

A empresa americana, que começou a operar em junho de 2012, ofereceu os serviços de graça para chamar a atenção no mercado brasileiro, mas não houve interessados. Nos EUA, já recorreram à empresa mais de 600 autores, incluindo best-sellers do “New York Times”, como Alison Gaylin e Jon Land.

Garry Martin, criador da Autography, diz que editoras como Penguin e Harper Collins aceitam que livros autografados sejam vendidos sem DRM pelo site da empresa porque a dedicatória serve como um “DRM brando”, ao permitir identificar a origem de um exemplar pirateado.

Martin diz que seus advogados estudam a patente de autógrafos da Apple, “que é muito similar” ao modelo da Autography, lançada um ano e três meses antes.

Precursor por precursor, à frente nesta fila estão escritores independentes como o gaúcho Luís Peazê, 56, que há cerca de três anos oferece seu e-book “Alvídia – Um Horizonte a Mais” autografado, na venda por seu site. Mas é um desses pioneirismos que costumam ficar restritos a amigos e familiares.

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DEDICATÓRIA VIRTUAL

Como funcionam os autógrafos digitais (*)

1 – O leitor escolhe a opção “livro autografado” na loja e, ao fazer o pagamento, preenche um formulário que será enviado ao autor, com o pedido de autógrafo

2 – O autor abre, em seu próprio tablet, o aplicativo que permite dar autógrafos digitais

3 – Com uma caneta do tipo stylus, usada para fazer anotações digitais em tablets, o autor faz a dedicatória em uma página digital em branco

4 – Ainda dentro do aplicativo, a página é inserida no e-book, que não pode ter DRM (trava de segurança presente em quase todos os livros digitais)

5 – O e-book, já com a assinatura, é enviado para o e-mail do leitor, que pode então transferi-lo para seu e-reader

6 – A página com a assinatura, sem o livro, pode ser compartilhada pelo leitor nas redes sociais

(*) O passo-a-passo corresponde aos procedimentos via Autography, principal programa do gênero. Outros programas têm pequenas variações; a maior parte oferece o autógrafo fora do livro

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Margaret Atwood criou máquina para dar autógrafos à distância

Além de escritora premiada internacionalmente e hiperativa nas redes sociais, a canadense Margareth Atwood, 74, foi a visionária criadora de uma máquina para dar autógrafos à distância, antes mesmo de os e-books crescerem no mercado.

Em 2004, ciente da impossibilidade de atender aos anseios de fãs dos vários países onde seus livros são publicados, abriu uma empresa e patenteou o mecanismo que receberia o nome de LongPen.

Funcionava assim: ela se posicionava numa ponta da máquina, e o leitor, em outra, instalada em alguma livraria em outro canto do mundo. Após uma conversa por vídeo, o leitor colocava o livro no terminal. Atwood assinava em uma tela, e um jato com tinta imprimia o texto no terminal do leitor.

A máquina não chegou a ficar popular no meio literário, mas, em 2011, ganhou uma versão para os meios virtuais. O braço digital da empresa hoje se chama Fanado e combina a ideia de autógrafo à distância com videoconferências e mídias sociais.

Nessa nova fase, a autora atraiu a atenção de editoras como a Random House, a Harlequin e a HarperCollins. Em 2011, autores como Michael Chabon e Neil Gaiman a acompanharam numa demonstração do produto na feira BookExpo America.

A parte “analógica” da empreitada avançou com outras prioridades –hoje, a empresa Syngrafii, de propriedade de Atwood, é voltada à autenticação de papéis legais, e tem entre seus clientes bancos e governos.

Assinaturas à distância são uma ambição desde o século 19. Em 1888, o engenheiro elétrico americano Elisha Gray criou um mecanismo chamado Teleautograph, cuja meta era permitir “a alguém transmitir sua própria escrita à distância por meio de um circuito”.

A máquina hoje é considerada uma precursora do fax, que se popularizaria em meados do século 20 para logo se tornar defasado. (R.C.)

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Raquel Cozer é colunista da Folha de S.Paulo