Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A formação do mercado editorial brasileiro

Para quem se aposentou há menos de um mês, Karin Schindler demonstra uma disposição invejável. Com 84 anos, vividos entre Alemanha, Uruguai e Brasil, esta senhora judia alemã naturalizada uruguaia trabalhou 41 anos como agente literária e praticamente testemunhou a formação do mercado editorial brasileiro como o conhecemos hoje. Daqui para a frente, diz ela, vai fazer o que mais gosta: sentar no jardim nos fundos de sua casa e ler, de preferência nada que seja literatura.

– Estou lendo um livro (em alemão) sobre a origem de expressões idiomáticas. Gosto mais disso do que de literatura – admite Karin em seu sotaque carregado, que mascara um português perfeito.

O aspecto meigo e bem-humorado esconde a negociadora implacável que várias gerações de editores tiveram de enfrentar. Luciana Villas-Boas, ex-diretora editorial da Record e hoje agente literária, conta que trabalhou diretamente com Karin durante 17 anos e continua vendo-a como a “doce senhora”.

– O convívio sempre foi muito bom enquanto estive na Record e continua sendo hoje em dia – diz Luciana. – Ocorre que o agente que representa o escritor e a editora estrangeiros muitas vezes tem demandas e necessidades diferentes. Ele tem que explicar as peculiaridades daqui e nem sempre eles entendem lá. Eu sempre soube quando ela estava sendo dura para atender a uma necessidade dos clientes dela.

À frente da Agência Schindler, que instalou em um anexo no fundo do sobrado onde mora no Brooklin, Zona Oeste de São Paulo, Karin representou desde F. Scott Fitzgerald até Stephen Hawking, passando por Agatha Christie, Isaac Asimov e Harold Robbins, entre outros best-sellers.

Suas histórias envolvem menos a relação direta com autores e mais casos de negociações com editores e livros.

– Para nós, (os autores) são apenas pedaços de papel – observa ela, o sorriso aberto e o olhar atento.

Entre outras coisas, Karin conta que quando começou a agenciar autores, em meados dos anos 70, o mercado editorial era informal e os contratos ainda eram muito amadores. Segundo ela, os adiantamentos, verba dada para os escritores antecipando a venda dos livros, não ultrapassavam US$ 200.

Uma história curiosa da agente aposentada diz respeito à disputa dos direitos de um livro cujo autor é sinônimo de sucesso garantido. Depois de instituir um leilão em que sobraram apenas dois editores, um deles arrematou os direitos de publicação por US$ 95 mil.

– Liguei para ele e disse: “Você ganhou”. Desligamos o telefone e estava tudo bem. Até eu receber uma nova ligação dele, agitado, dizendo que me pagaria US$ 100 mil. E eu falei que não precisava, porque os direitos já eram dele. Mas ele insistiu, dizendo que queria ter certeza de que publicaria a obra – conta ela, que não revela nomes, mas confirma que a compra valeu cada centavo investido.

Karin fala muitos nomes estrangeiros ao citar seus autores, de Sigmund Freud a Dale Carnegie, este último autor do sucesso “Como fazer amigos e conquistar pessoas” (lançado aqui pela Companhia Editora Nacional). Não menciona escritores brasileiros por uma simples razão: não quer ser “babá”.

– Uma única vez aceitei agenciar um autor brasileiro, há muito tempo. Um dia, eu estava em casa em um fim de semana com a família, recebendo amigos para um almoço, quando o telefone tocou. Era esse escritor me perguntando: “Por que o meu livro não está exposto na livraria Brasiliense da Barão de Itapetininga?” Nunca mais.

Lucia Riff, que atuou como editora na Nova Fronteira antes de abrir a Agência Riff há 24 anos, guarda com carinho o gesto da veterana agente literária quando soube que deixaria a edição para passar a agenciar autores e representar editoras.

– Ela foi muito carinhosa comigo me chamando para um café da manhã. Falou sobre como seria e me alertou sobre autores brasileiros, inclusive contando essa experiência dela com o tal escritor – lembra Lucia. – E é verdade que isso acontece, mas era uma das coisas que eu queria ao mudar: trabalhar com autores brasileiros.

Nascida em um subúrbio de Berlim, Karin Schindler fugiu de casa com a família em abril de 1940 levando apenas a roupa do corpo. Do porto de Gênova, na Itália, partiu para o Uruguai, que acolhia judeus alemães fugidos do nazismo.

– Por isso não abro mão da cidadania uruguaia. Eles nos acolheram e aqui (no Brasil) nos fecharam as portas. O senhor Getúlio (Vargas, presidente à época) estava no balanço da conveniência – diz Karin.

Ela desembarcou no Porto de Santos em 1955, casou-se no ano seguinte e mudou-se um ano depois para o sobrado do Brooklin onde mora até hoje. Depois de um período de adaptação, o marido conseguira equilibrar as contas e sugeriu que a mulher parasse de trabalhar como secretária trilíngue. Após um período, ela voltou à ativa, como secretária de Johannes Bloch, dono de uma das primeiras agências literárias do Brasil, a Bloch.

Filho do fundador de uma editora de peças teatrais, Bloch fugira primeiro para a Inglaterra, onde continuou trabalhando como editor, e depois veio para o Brasil a fim de representar oito editoras, entre as quais Penguin, Oxford e Cambridge. Foi Jorge Zahar, da editora homônima, quem sugeriu a ele a abertura de uma agência. Pouco tempo depois, Bloch se afastou do trabalho em razão de saúde e ela foi obrigada a cuidar do negócio.

– Me jogaram do lado fundo da piscina e tive que aprender a nadar – lembra.

Em 1976, dois anos depois de mergulhar no mundo literário, ela foi a Londres visitar as editoras que passaria a representar. Das 36 contatadas, 35 aceitaram a representação de Karin. A única que recusou pediu desculpas porque havia se adiantado em razão do estado de saúde de Bloch e procurou outra pessoa, lembra ela.

Trinta e cinco anos depois, Karin está satisfeita com o arranjo que mantém a agência nos fundos de sua casa, agora sob os cuidados da ex-editora Sueli Pedro dos Santos.

– Eu fico aqui e eles ali, ambos respeitamos os nossos espaços – conta, apontando primeiro o chão da sala de sua casa, e depois o apertado escritório que divide os fundos da construção com o orquidário deixado pelo falecido marido, Rodolfo. – Mas eu não entendo nada de orquídeas e plantas. Para mexer nisso, chamo um jardineiro.

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Alessandro Giannini, do Globo