Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As conexões ocultas

A reação na província maranhense já dá os primeiros sinais do impacto do bombástico livro Honoráveis Bandidos: um retrato do Brasil na era Sarney, do jornalista Palmério Dória, editado pela Geração Editorial e um dos mais vendidos no país. As 207 páginas que o jornalista oferece ao leitor mostram um retrato que os coronéis do sertão denegam quando circulam pelos salões da modernidade (ou mudernidade). O título inspirado em Marx é muito sugestivo e, para quem leu, não deixa de lembrar a obra do grande Raymundo Faoro, Os Donos do Poder.

O retrato do nosso Dorian Gray tupiniquim do sertão parece incomodar uma parcela da sociedade maranhense, que – para usar uma expressão Paulo-Freiniana no Pedagogia do Oprimido – introjetou a imagem do opressor e não sabe viver sem o babalorixá. Isso revela como o falecido educador estava certo quando demonstrou a relação dialética e cheia de ambigüidade entre o senhor e o escravo, pois não existe poder sem consentimento, seja ele originário da tradição ou do carisma do chefe, como nos mostra a teoria weberiana.

Seria Sarney, Antonio Carlos Magalhães e tantos outros coronéis do sertão tipos ideais em extinção nesse confuso processo de modernização conservadora brasileira? Estaremos condenados por muitos séculos às práticas adotados por esses chefes?

O jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, editor do combativo Jornal Pessoal, ao comentar o livro de Palmério pergunta: ‘Qual o mais importante dentre todos os coronéis da política brasileira?’

Perguntaríamos: importante em que sentido? Nas suas grandes e pequenas maldades e corrupções? Na perspicácia do uso das forças tradicionais brasileiras, cujo um dos símbolos é a Casa Grande, tão bem pincelada pelo pernambucano Gilberto Freyre? Nas suas astúcias ao fazer alianças aproveitando-se de conjunturas favoráveis a eles, como as que se deram no regime militar por longos anos, cujo reflexo se faz sentir até hoje?

Se olharmos por esse ângulo todos foram (e ainda são) importantes. Mas o efeito mais nefasto do coronelismo na política brasileira pode ser medido pelo pragmatismo adotado nas suas práticas políticas. Os honoráveis bandidos não poderiam existir sem a conivência e o assentimento da sociedade que lhe dá sustentação e legitimidade. Temos aí o exemplo do ocorreu no dia 5 de novembro passado em São Luís do Maranhão durante o lançamento do livro de Palmério.

É verdade, como anota Lúcio Flávio Pinto, que são autênticas satrapias porque a forma como agem, o poder de mando são os mesmos que se produzem e reproduzem no cotidiano da sociedade onde dominam. Para quem conhece o Maranhão sabe que uma parcela grande da sociedade maranhense idolatra o coronel, e o tem como um santo, um babalorixá regional. E quantos Sarneys não existem mandando nas instituições públicas, nos escritórios, nas fábricas e instituições educacionais, seguindo o velho refrão do ‘manda quem pode, obedece quem tem juízo’?

Sarneys, Antonios Carlos Magalhães, Barbalhos e tantos outros são as expressões reais e simbólicas de um tipo de exercício de poder que só é possível existir numa sociedade autoritária e extremamente estratificada, como é a sociedade brasileira. Mas é importante chamar a atenção que isso ocorre não somente nos fundões desse imenso país, com quer fazer crer certa parcela dos que fazem a opinião pública. Não é preciso fazer uma leitura muito atenta do Honoráveis Bandidos para perceber as íntimas conexões que os coronéis arcaicos do Brasil-Profundo mantêm com os autodenominados modernos da Avenida Paulista e dos Jardins e os grandes honoráveis bandidos da Zona Sul carioca, Rede Globo, empresas multinacionais, estatais, grandes latifundiários do sul e sudeste que também fazem parte dos esquemas. Eles têm muito a ver com a difusão das práticas antipedagógicas que passam a ser seguidas e imitadas pelos indivíduos na sociedade brasileira. É nessa aliança que o Brasil vem sendo governado ao longo de sua história.

Parte do grotesco

É possível governar sem eles? Eis uma interrogação que tem nos custado muito caro, principalmente para aqueles que acreditaram (e acreditam) que para mudar é preciso que aconteça uma real ruptura política. O Brasil só transformará quando forem embora desse mundo e transformados em cinzas nos mausoléus encomendados? Ou será que estamos condenados a viver com seus fantasmas, suas almas redivivas e encarnadas em novíssimos coronéis pret-à-porter? Viveremos o eterno arcaísmo com fachada moderna de uma elite que manda e se diz moderna, mas que, na verdade, usufrui (e como!) das forças do atraso, ou o poder do atraso, como diz certo sociólogo?

A história dos países que conseguiram uma modernidade digna desse nome nos ensina uma lição histórica por demais esquecida neste nosso país: a modernidade, no seu sentido mais profundo, só conseguiu se tornar real e concreta quando as forças políticas organizadas da sociedade assumiram os seus papeis e se tornaram, de fato e de direito, sujeitos da sua própria história. Isso significa não só um desenvolvimento econômico (fábricas e hidrelétricas, cidades e viadutos), mas a existência de cidadãos conscientes e não manietados por babalorixás e salvadores da pátria. Por isso, enquanto predominar esse gente no poder, dificilmente conseguiremos criar uma cultura política na qual os cidadãos assumam, de fato e de direito, os seus destinos.

A miséria, os bolsões de pobreza são os terrenos férteis onde vicejam os caciques e coronéis. Não é por menos que a terra de Sarney exibe os maiores índices de pobreza do Brasil. A modernidade sem educação, sem saúde e habitação, e condições de empregabilidade, é simples arremedo onde viceja esse tipo de prática. Eles sabem disso e, por isso, tem muito pouco interesse em que o povo tenha acesso ao saber. Enquanto não fizermos essa ruptura, assistiremos às mesmas práticas políticas que nos causam asco, mas que continuamos a alimentar.

Talvez essa simbiose entre o Brasil arcaico e a parte que se diz moderna seja funcional para a manutenção desse estado de coisa, como é possível perceber in loco quando se sai do sul-maravilha e se embrenha nos rincões chamados atrasados do país. Se mergulhássemos um pouco nos vários Maranhões desse imenso país, como o Nordeste, a Amazônia e parte invisível das grandes cidade modernas brasileiras, como no Rio e São Paulo, onde vive boa parte do povo, com suas favelas e invasões, veríamos o que torna possível a existência dos Sarneys e tantos outros honoráveis bandidos, ícones do atraso desse país.

O livro de Palmério Dória revela uma face disso, mas o que apresenta é muito pouco sobre as conexões imbricadas nas relações incestuosas entre o eixo chamado moderno e a parte atrasada do Brasil. Esses dois brasis, para usarmos a expressão do antigo Jacques Lambert, são duais e complementares nas suas relações coloniais.

Mas é interessante como a imprensa situada no sul-maravilha tem pouco interesse em revelar todos esses laços. Isso porque faz parte deles. Quando revela mostra uma parte do grotesco, como os costumes e seduções dos babarorixás, com suas patéticas mulheres, suas aventuras amorosas, onde, na narrativa machista, elas aparecem muito venais e ridículas como no capítulo oito do livro de Palmério, não por acaso chamado ‘o lado feminino (capítulo cor de rosa)’.

Personagem exótico

Isso me lembrou uma observação de Simone de Beauvoir no seu livro Segundo Sexo, quando dizia que a mulher se conhece e se escolhe, não tal como existe para si, mas tal qual o homem a define. E quem a define é seu mandatário, o coronel, no caso, mas também certo olhar que nem o jornalista deixa de se revelar um forte machismo quando a descreve.

Não podemos esquecer que essa mesma imprensa faz parte desse mesmo esquema. Quando os seus interesses são contrariados, como no caso de Sarney, pode amplificar seu aparente espanto com o coronel, de repente transformado num exótico personagem. Ao fechar a o livro do jornalismo não pude deixar de me perguntar: por que só agora o velho coronel está sendo demonizado, depois do apoio que está dando ao governo Lula e às proximidades das disputas eleitorais? São perguntas que não podem calar.

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Sociólogo