Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Do Rio a Davos

No capítulo sete deste livro, a cena do crime se desloca da cúpula da elite global nos Alpes suíços para Zug, um povoado a meio caminho entre Davos e Zurique. Ali se busca resolver um mistério. Por que num povoado de 15 mil habitantes estão registradas 30 mil empresas? Por que encontramos as sedes de tantas corporações multinacionais nesse pitoresco povoado situado às margens de um lago? Sejam empresas do porte de uma AstraZeneca, a fabricante de biofármacos, ou a sinistra mineradora Glencore, ou mesmo firmas mais modestas, como a Infront Sport&Media, empresa de marketing do Mundial de Futebol, propriedade do sobrinho do presidente da FIFA, Sepp Blatter?Andy Robinson_livro

Zug tem mais sedes de multinacionais do que o Rio de Janeiro, mas, curiosamente, não abriga nenhum edifício imponente como a sede da Petrobras ou do BNDES. Somente letreiros com o logotipo corporativo e escritórios modestos onde cinco ou seis empregados olham a neve através da janela. Uma dessas sedes é a do Burger King, a cadeia de fast-food cuja expansão vertiginosa destrói culturas alimentícias por todo o planeta e, de passagem, leva bilhões de dólares a seus acionistas.

O Burger King se esconde em uma rua anódina em Zug, sem nada a ver com a pomposa sede mundial em Miami. E não é difícil averiguar por quê. Zug é o cantão da Suíça – país classificado como paraíso fiscal pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) –, onde se pagam menos impostos sobre lucros e outros ganhos de capital. Se o Burger King é um grupo extraordinariamente rentável, deve isso a dois fatores: redução de impostos e salários indignos pagos a seus trabalhadores. Em 2014, a engenharia fiscal do Burger King chegou a Miami também. A cadeia anunciou que transferiria a sede dos Estados Unidos para o Canadá depois de adquirir a Tim Hortons, cadeia canadense de donuts. Economizaria, assim, 1,2 bilhão de dólares em impostos a pagar ao fisco norte-americano nos próximos dez anos.

Descobrir o segredo sujo da Burger King naquela rua de Zug se tornou útil para ilustrar as contradições do Davos Man, esse novo gênero de investidor multimilionário e capitalista filantrópico, que veste botas de neve e gorro de cossaco todo mês de janeiro para transitar entre as sessões de debate e brainstorming nas dezenas de hotéis de Davos. Muitos deles foram antigos sanatórios de tuberculosos do romance de Thomas Mann. Em 2015, no entanto, o hotel de referência foi o novo Intercontinental, conhecido como “ovo de ouro”, localizado na ladeira da montanha, onde a faixa de preços da diária se situa entre mil e dez mil dólares. Tipos como Nicolas Berggruen, o bilionário sem-teto (vive apenas em hotéis de luxo como o ovo de ouro), famoso nas sessões do Fórum da elite em Davos por combinar operações financeiras altamente especulativas com generosas atividades filantrópicas. Berggruen é acionista do Burger King, mas prefere ser conhecido pela ligação com o Berggruen Institute, uma think tank que pretende melhorar os sistemas de administração pública e aumentar a eficiência dos Estados mundo afora.

O verdadeiro Mr. Burger King, no entanto, não é de Miami nem de Wall Street. É do Brasil. O lince financeiro Jorge Paulo Lemann, nascido há pouco mais de setenta anos no Rio de Janeiro, comprou em 2010 a maior parte das ações da cadeia de hambúrgueres através da 3G, empresa de investimento pertencente a seu grupo financeiro. Logo depois acrescentaria a seu império a Heinz e a Anheuser-Busch, fabricante da Budweiser, convertendo-se, assim, no homem mais rico do Brasil, com um patrimônio no valor de 23 bilhões de dólares. Lemann, um sobrenome que, segundo a Bloomberg, “sintetiza a mais impiedosa eficiência”, reside na Suíça, ainda que não costume ser visto em Davos. Ele possui habilidade em combinar agressivas estratégias de especulação financeira e asset stripping (desmonta as empresas que adquire) com atividades filantrópicas, sendo extremamente generoso em suas doações às universidades de elite norte-americanas, convertendo-se em outro paradigmático Davos Man. O fato do proprietário do famoso sanduíche Whopper ser um brasileiro não chega a surpreender num país que baseia, em grande parte, seu modelo de desenvolvimento nas gigantescas multinacionais da agroalimentação, copiando ao pé da letra o desastre do Big Food norte-americano.

Lemann ao menos limita sua fuga de impostos à engenharia tributária de suas empresas. Outros brasileiros têm interesses mais diretos na Suíça. Segundo os documentos vazados na mídia pelo ex-funcionário do HSBC, Herve Falciani, existem oito mil contas secretas de membros da elite brasileira na filial suíça. “Como o total de recursos de brasileiros era de sete bilhões de dólares à época, 2006/2007, a recuperação desse dinheiro, ou parte dele, equivaleria ao tamanho do ajuste fiscal que a equipe econômica da presidente Dilma Rousseff pretende implementar no Brasil deste ano”, segundo o blogue do jornalista brasileiro Fernando Rodrigues.

Magia e espiritualidade

Um dos eixos deste livro reside em investigar como esta endêmica evasão tributária da elite global – segundo a Tax Justice Network, 21 trilhões de dólares, dez vezes o PIB do Brasil – priva os Estados de melhorarem seus serviços públicos desde a Grécia até os Estados Unidos, sendo o Brasil um caso muito claro. Enquanto os Estados perdem arrecadação, a mescla de liberalização e capitalismo filantrópico está assumindo o papel do Estado em áreas que vão da educação à saúde. A onda de protestos que se produziu em 2013, a respeito da qualidade dos serviços públicos no Brasil, é parte de uma reivindicação já bastante generalizada contra a filosofia de Davos.

Mas Davos é ponto de encontro obrigatório para os que querem andar de braço dado com o poder, sobretudo para um partido histórico de esquerda que quer demonstrar sua vontade em se reconciliar com os mercados financeiros e as grandes multinacionais. Até Dilma Rousseff se sentiu obrigada a ir, em janeiro de 2014, ao Fórum de Davos, ainda que o verdadeiro motivo da viagem fosse se reunir com Sepp Blatter em Zurique, por onde a FIFA canalizaria seus lucros obtidos no Brasil, por meio da engenharia fiscal suíça. A partir do momento que Lula ganhou as eleições, os gestores de fundos de investimento globais passaram a elogiar o Brasil durante suas reuniões ao lado das pistas de esqui como se tratassem de uma nova fase do capitalismo. Não há nada mais atraente em Davos do que um operário lutador, convertido em presidente business friendly, e Lula se tornou uma estrela entre os convidados das festas nos ex-sanatórios de tuberculosos do romance de Thomas Mann, agora convertidos em hotéis de luxo. Foi escolhido estadista global do Fórum Econômico Mundial, um “exemplo de liderança planetária a ser seguido”, conforme resumiu Klaus Schwab, o empresário suíço que criou o Fórum da elite há quarenta anos. Conforme explicado no quarto capítulo, Schwab é muito mais astuto do que pode parecer um homem sem atrativos e com um inglês da escola de e-business. Há muito tempo Schwab aprendeu que o projeto de globalizar o capitalismo financeiro e abrir caminho para marcas como o Burger King é conseguido mais facilmente se disfarçado através de palavras como stakeholder, filantropia e empreendedor social. No final das contas, o lema de Davos é “Committed to improving the World” (Comprometido em melhorar o mundo). Assim ganha destaque o surgimento de uma nova classe média no Brasil, para quem Davos podia vender hipotecas, geladeiras e automóveis.

Mesmo assim, os Davos Men de Wall Street ficaram impressionados quando Luciano Coutinho, atual presidente do BNDES, vinha a Davos a fim de explicar como o êxito das novas multinacionais de matérias-primas e agribusiness se devia, em grande parte, aos créditos do gigantesco banco estatal de desenvolvimento. Os gestores de fundos – e Ian Bremmer, um dos gurus de Davos – esfregavam as mãos diante do êxito desse novo exemplo de capitalismo de Estado, um modelo salomônico, progressista mas market friendly (voltado ao mercado). Justamente aquilo que estimula a adrenalina em Davos.

Porém, na perspectiva de Davos, era difícil diferenciar as grandes empresas respaldadas pelos bancos públicos de Lula e Dilma das grandes marcas do capitalismo made in USA, inimigos históricos da esquerda brasileira. Tanto a Petrobras como a Vale apostavam em modelos agressivos de extração, como os da Exxon ou da Alcoa. A Odebrecht, e suas relações endogâmicas com o Estado, um sem-fim de contratos públicos para obras de utilidade discutível, não parecia muito diferente da Bechtel, a multinacional norte-americana tão estreitamente vinculada a Washington e ao Pentágono.

Em 2008, no início da crise, entrevistei em Davos Sergio Gabrielli, então CEO da Petrobras, que me explicou um modelo de desenvolvimento baseado em estimular o crescimento mediante a venda de milhões de automóveis, lava-roupas e televisores para uma nova classe média brasileira. Gabrielli se mostrava um executivo inteligente e comprometido com a estratégia desenvolvimentista do PT, e o Brasil era um país que ainda possuía milhares de rotas sociais e ambientais que representariam alternativas ao modelo de capitalismo corporativo. Em lugar da visão da nova esquerda, a visão de Gabrielli lembrava bem mais a da General Motors e da Chevron na sociedade consumista do pós-guerra norte-americano. Mas no Brasil ninguém apostava no ensino público como nos Estados Unidos naqueles anos, e muito menos nos serviços sociais criados por Roosevelt e seu New Deal.

O paradoxo do Brasil e de Davos se mostrou claramente em janeiro de 2015, quando Joaquim Levy, o novo ministro da Fazenda, fez uma longa viagem aos Alpes suíços para convencer os ultrarricos especializados em evasão fiscal de que o novo programa de ajustes do governo brasileiro não continha nenhuma burla.

Era o país do empreendedor social mais querido por Klaus Schwab: Paulo Coelho. Vestindo caftan junto com botas e trajes para neve, passava magia e espiritualidade aos tubarões financeiros, resguardados por cinco mil seguranças.

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Andy Robinson é colaborador dos jornais The Nation e La Vanguardia, onde também mantém seu blog Diario itinerante, uma espécie de “Up in the air” jornalístico que segue os fluxos globais de capitais que desestabilizam o mundo de Reykjavík a Los Angeles e descobre que – como observou o geógrafo marxista David Harvey – “o capitalismo jamais resolve seus problemas; se limita a deslocá-los a outros lugares”.

Nascido nos arredores de Liverpool (1960), Robinson vive em Chelsea, Manhattan, desde 2002. É formado em Ciências Econômicas e Sociologia pela London School of Economics e, em Jornalismo, por El País UAM. Trabalhou na Espanha para Cinco Días, Business Week, The Guardian, The New Statesman, Ajo Blanco, Blue print, Vogue. Traduziu “Barcelonas”, de Vázquez Montalbán.