Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Acerto de contas

“Já ganhei da morte várias vezes”, escreveu o mineiro Paulo Mendes Campos em 1963, em crônica publicada na revista Manchete.

O cronista tinha então 41 anos. Seguiria vencendo a morte por outros 28 anos, tempo suficiente para publicar mais vários títulos, incluindo o debochado “O Colunista do Morro” (1965, Ed. do Autor), em que encarnava um Ibrahim Sued da baixa sociedade.

Nos últimos anos, porém, o vencedor já estava meio indefinido. “Ele tinha os sinais da morte nele”, lembra o jornalista e amigo da vida toda Wilson Figueiredo. Seus livros minguaram. Em 1991, Paulo Mendes Campos foi derrotado pelo alcoolismo.

Desde aquele tempo, conhecedores de sua obra, considerada tão ou mais sofisticada que a de Rubem Braga e Fernando Sabino, lamentam o pouco reconhecimento que ele teve na comparação com outros cronistas.

“É fácil dizer que a vida não foi justa com Paulo Mendes Campos. Quem não fez justiça foram os que tinham a obrigação de fazê-la, na condição de críticos literários, escritores, poetas, ensaístas”, diz o colunista da Folha Janio de Freitas.

Detentora desde 2011 de parcela considerável da obra do autor, a Companhia das Letras quer agora “recolocar o nome de Paulo Mendes Campos no circuito”, como diz o editor Leandro Sarmatz.

O trabalho foi iniciado com a publicação, no fim de 2012, de Primeiras Leituras, dentro do selo Boa Companhia, destinado a jovens. O livro teve 12 mil cópias compradas pelo governo federal, dentro do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE).

“Aprender é uma mutilação”, argumenta o autor na bela crônica que dá nome ao livro a ser distribuído em escolas de ensino médio, na qual conta como descobriu Machado de Assis, com quem “embirrou” num primeiro momento, e outros grandes.

No final deste mês, a editora começa a reedição dos mais importantes textos do autor, que devem ser reunidos num total de 15 títulos.

A seleção dos primeiros, O Amor Acaba e O Mais Estranho dos Países, ficou a cargo de Flávio Pinheiro, diretor geral do Instituto Moreira Salles, onde está o acervo do escritor. Pinheiro coordenou, entre 1999 e 2000, uma reedição da obra do autor pela Civilização Brasileira. Quis agora corrigir erros.

“O primeiro foi não ter datado as crônicas nos livros. O acervo da Manchete era desorganizado e, se fosse esperar para checar as datas, talvez o livro não tivesse saído.”

Outras lacunas a serem preenchidas são a reedição dos poemas e de um livro de 1981 adorado por especialistas e que nunca tinha voltado a circular: Diário da Tarde.

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Autor levou verve poética para a crônica

Paulo Mendes Campos, o mais reservado dos “quatro mineiros” -grupo que formava com os amigos Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino-, foi antes de tudo um poeta.

Seu primeiro artigo para jornal, em 1939, em sua Belo Horizonte natal, foi sobre um poeta, Raul de Leoni.

O primeiro livro, “A Palavra Escrita”, editado pelos poetas Thiago de Mello e Geir Campos, saiu com 126 cópias em 1951, tendo depois seus versos reeditados em “O Domingo Azul do Mar”, de 1958.

Destacou-se também traduzindo outros poetas, como o chileno Pablo Neruda e o francês Paul Verlaine.

Esse material, versos próprios e traduzidos, será editado pela Companhia das Letras, que também prevê um volume com aforismos -PMC era autor de máximas como “O brasileiro adia, logo existe” e “É como dizia Freud: morreu, babau” (esta assinada pelo “colunista do morro”).

Foi depois de deixar Belo Horizonte rumo ao Rio, aos 23 anos, em 1945 -para conhecer Neruda, que por lá andava-, que PMC chamou atenção com crônicas, em veículos como o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil e a revista Manchete.

“Quando chegou ao Rio, ele se soltou mais, ficou mais íntimo da vida”, lembra o jornalista Wilson Figueiredo, 87, que também migrou de Belo Horizonte para o Rio.

“Nunca senti a vocação do romance e do conto”, disse Paulo Mendes Campos a O Estado de S. Paulo, em 1985. “Tentei escrever uma novela; lá pela metade, o Dostoiévski que eu esperava de mim se esvaiu na cesta das risadas.”

Prosa poética

O autor acabou levando para a crônica sua verve poética. “O vínculo pessoal e afetivo dele era com a poesia”, diz o editor Flávio Pinheiro.

“Ele fazia essa coisa rara que é uma superprosa poética -gênero que ficou com reputação ruim porque muitos pensam que prosa poética é açucarada, mas, na melhor tradição, ela é riquíssima.”

Pinheiro engrossa o coro dos que consideram PMC o mais sofisticado dos “quatro mineiros”. “Ele era o mais preparado, o mais erudito”, diz o jornalista Humberto Werneck, que conta a história dos cronistas mineiros do século passado em Desatino da Rapaziada (Companhia das Letras).

PMC foi também o único a não se casar com uma herdeira -escolheu Joan, inglesa com quem teve dois filhos-, o que o obrigou a dividir a escrita literária com o funcionalismo público e a redação de roteiros publicitários.

Reedição

Pinheiro fez uma opção ousada ao editar PMC na Civilização Brasileira. Desfez edições como O Cego de Ipanema (1960) e Homenzinho na Ventania (1962), montadas pelo cronista para a Editora do Autor, e organizou títulos temáticos -algo que a Companhia das Letras segue agora.

“Ele publicava crônicas conforme as escrevia. Dada a atemporalidade delas, dividi por temas”, afirma. Lançou títulos como O Gol É Necessário, sobre futebol (PMC era um grande atacante, dizem), e Alhos e Bugalhos, com textos humorísticos.

Diário da Tarde, livro publicado em 1981 pela extinta Massao Ohno e há décadas fora de catálogo, mostra que PMC também gostava de pensar suas edições. Criado como “um livro a ser folheado num lindo dia de chuva, à falta de uma boa pilha de revistas antigas”, é um jornal inventado pelo escritor. É composto de 20 edições, cada uma dela com oito seções.

A Companhia lançará o título na Flip em formato de jornal, emulando os periódicos cariocas dos anos 60, com fotos e desenhos do autor. A ideia é que custe cerca de R$ 2. Só depois sairá em edição normal, tal como em 1981.

O título será editado com o apoio do Instituto Moreira Salles, onde está, desde 2011, o acervo do escritor. As pesquisadoras Elvia Bezerra e Katya de Moraes -que identificaram as datas das crônicas nas edições lançadas a partir de agora- trabalham agora em cadernos e desenhos de PMC. Desse material podem sair ainda novas edições. (Raquel Cozer)

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Paulo Mendes Campos, segundo amigos

>> Janio de Freitas, colunista da Folha – É fácil dizer que a vida não foi justa com Paulo Mendes Campos, caso único em comparação com os outros três célebres e celebrados integrantes dos “quatro mineiros”. Quem não fez justiça foram os que tinham a obrigação de fazê-lo, na condição de críticos literários, escritores, poetas, ensaístas.
Pouco ou nada expansivo, de voz e riso baixos, nenhum jeito e vontade para exibicionismos, Paulinho podia não seduzir, mas era o mais culto, o melhor estilo, o mais versátil -poeta excelente, tradutor admirável, cronista com frequência à altura do velho Braga. Não duvido de que o reconhecimento tão insuficiente lhe doesse muito. Mas não se tornou ressentido, no máximo adotou teores alcoólicos, ou juntou-os a outras razões autodestrutivas.

>> Wilson Figueiredo, jornalista – Ele era um homem discreto, tímido por delicadeza. Não era um tipo exuberante que marca presença -pelo contrário, ele desmarcava presença. Depois que chegou ao Rio, se soltou mais, ficou mais íntimo da vida. Foi quando veio para a crônica. Ele não tinha outra vocação que não fossem as letras. Não conheci ninguém para quem a literatura fosse uma fatalidade como para ele. Nos anos 80, quando eu ia para o Jornal do Brasil, nos encontrávamos para eu pegar os artigos dele. Paulo já tinha os sinais da morte nele.

>> Thiago de Mello, poeta – Conheci o Paulinho quando eu tinha 23 anos. Quando vi os poemas dele, fiquei maluco. [O poeta] Geir Campos e eu estávamos fazendo na Hipocampo, nossa editora artesanal, uma seleção com 20 livros de autores que a gente amava. Entraram Drummond, Bandeira, Guimarães Rosa. E então editamos A Palavra Escrita (1951), o primeiro do Paulinho. Eram 126 cópias. Entregamos a dele no dia em que se casou.

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[Raquel Cozer é colunista da Folha de S.Paulo]