Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Livros abandonados nas bibliotecas mexicanas

Em meio a concorrida pré-campanha política presidencial de 2006, a assustadora violência urbana gerada pelo crime organizado e o narcotráfico, além dos tumultuados efeitos dos furacões Katrina e Rita nos estados do norte do México, o governo de Vicente Fox ainda teve que explicar-se, no fim de semana, a uma perplexa comunidade cultural chocada com as graves denúncias, em manchete de primeira página, há pouco publicadas pelo respeitado matutino El Universal. A maioria das 7.010 bibliotecas públicas do país está em estado deplorável, todas bastante descuidadas, algumas até abandonadas (existem ainda 5.301 escolares e 231 especializadas) – reduzidas, nos últimos vinte anos, a atravancados e empoeirados depósitos de livros incapazes de exercer sua função primordial: locais de consulta e leitura acolhedores, limpos e bem abastecidos de livros.


Foi o que constatou in loco a repórter Nurit Martínez. Muitas bibliotecas na capital mexicana não dispõem de mobiliário adequado nem luz suficiente, os banheiros cheiram mal, e o atendimento é dado por funcionários despreparados, mal pagos e desestimulados. Resultado de toda essa incúria: caiu a média de freqüência dos estudantes – só 25 consultas por dia. O ministro da Educação Reyes Tamez Guerra reconhece, num tom sincero mas nem por isso menos simplório, que ‘as pessoas não vão a bibliotecas porque regularmente não encontram lá o que precisam’. Quer dizer, também o acervo da rede anda mal sortido e, pior ainda, desatualizado.


Nesse contexto desanimador, o mais inaceitável – dizem escritores, editores, acadêmicos e parlamentares da oposição entrevistados pelo jornal – é o faraônico dispêndio de recursos do governo Fox (fala-se em cerca de 200 milhões de dólares) para inaugurar, a toque de caixa, antes da entrega da faixa presidencial, uma megabiblioteca na Cidade do México, a ‘José Vasconcelos’, assim batizada em justa homenagem a um dos grandes intelectuais mexicanos da primeira metade do século passado. Escritor, filósofo e político, mas sobretudo idealizador dos fundamentos da moderna educação no país, Vasconcelos foi um sonhador ao estilo de seu contemporâneo Monteiro Lobato, que ambicionava transformar o Brasil por meio de um belo projeto nacional de cultura. Como o escritor e editor brasileiro, Vasconcelos morreu frustrado.


Briga de foice


A obra da biblioteca, e toda a badalação oficial ao seu redor, tem provocado reações desfavoráveis no país pois, insistem integrantes da Comissão de Cultura da Câmara Federal, trata-se de um ‘elefante branco’ da gestão de Vicente Fox, que, empenhado nas glórias da posteridade, pouca atenção concede, entre outras omissões gritantes no setor, às necessidades urgentes de infra-estrutura da rede nacional de bibliotecas. A idéia básica do governo é que a megabiblioteca, de traços arquitetônicos imponentes, funcione como uma espécie de ‘cérebro’ da rede nacional de bibliotecas a qual estará ligado, por computador, todo o sistema no país.


Na verdade, as críticas a esse problema específico, o das bibliotecas, engrossam agora as reclamações e protestos da comunidade intelectual mexicana, que considera o governo de Fox pouco ou nada interessado nas questões culturais básicas. Quando se interessa pelo assunto é por meio de promoções grandiloqüentes – no fundo, uma tremenda incoerência histórica, pois o México sempre se caracterizou pelo carinho e respeito com que trata sua própria cultura e arte.


Uma análise mais equilibrada do conflito revelaria também que essas críticas, por vezes exageradas e maldosas, têm um certo sabor ideológico e se originam da feroz guerra de igrejinhas literárias que fermentam o mundo cultural mexicano. Em outras palavras: a eterna briga entre os autodenominados progressistas e os chamados neoliberais globalizantes, entre populistas e tecnocratas.


Gracias, señor Gates


Dois dias depois das constrangedoras revelações do El Universal, o ministro da Educação Reyes Tamez Guerra, felizmente sem posturas agressivas ou hostis do tipo ‘a culpa é da imprensa’, explicou, em espaço generoso dado pelo próprio El Universal, que, embora as denúncias do jornal sejam corretas, a situação não é tão ruim assim. Até o fim do governo Fox, informou, por meio do ‘Programa Nacional de Lecturas’ seu ministério destinará recursos adicionais para atualizar, via internet ou por redes de computação, as sete mil bibliotecas públicas do país, além de colocar em andamento um programa de recuperação e manutenção das escolas públicas do país e suas bibliotecas. Em ritmo de saída, o governo atual já aplicou no setor educação 4 milhões de dólares, parte dos quais na construção de 700 novas bibliotecas municipais.


Um dos grandes investidores na melhoria da rede nacional de bibliotecas do México tem sido o empresário americano Bill Gates, dono da Microsoft, que já liberou, por intermédio de sua fundação, 30 milhões de dólares ‘para fortalecer a tecnologia do sistema de bibliotecas’. Gates deverá ainda aplicar outros 10 milhões de dólares.


Mas, perguntam os observadores mais céticos da cena cultural mexicana, todo esse dinheiro do gringo para que, se a turma jovem não é chegada a pegar um livro, sentar e ler durante um par de horas? Segundo números da Unesco, o cidadão médio mexicano, também embevecido com as maravilhas da informática, lê um l,2 livros por ano, preferindo, além dos joguinhos coloridos da telinha, histórias em quadrinhos, revistas de fofocas televisivas e relatos ilustrados picantes do gênero ‘a enfermeira insaciável’ ou ‘a secretária safadinha’. Só duas revistas sobre o show business local, TVNotas e TVyNovelas, vendem, juntas, 1 milhão de exemplares todo início de semana.


Pior seria se pior fosse


Não é de admirar que, como no Brasil, uma das queixas mais freqüentes entre professores de espanhol, filólogos e gramáticos mexicanos é o parco vocabulário cotidiano usado pelos jovens estudantes – do ciclo secundário à universidade. De leitura escassa e, portanto, de fala tatibitate, apelam para a gíria mais vulgar, palavrões cabeludos, neologismos em código, gestos e sons guturais influenciados pelo baticum musical moderno, com destaque para o rap.


Adolescentes de ambos sexos invariavelmente pontuam sua comunicação com o termo guey, que na melhor das acepções significa algo como o nosso ô cara, ô meu, ô bicho, mas carregando também, no saboroso duplo sentido da linguagem popular, conotações ofensivas (cornudo, panaca, paspalho, bestalhão, veado) – tudo depende da entonação e do momento.


Como atacar esse analfabetismo funcional, perguntam os puristas do idioma, horrorizados com o que ouvem nas ruas, em casa, no rádio e na TV? Outro aspecto inquietante do problema são os papos ao celular, também na base de um vocabulário cômico e ininteligível que só eles entendem.


A Real Academia Española (RAE), de Madri, autoridade máxima do idioma, não perde tempo em discussões estéreis e, como de costume ágil na difusão e preservação da língua falada e escrita hoje por 450 milhões de pessoas no mundo, acaba de anunciar a publicação do Diccionario del Estudiante, um volume com mais de 40 mil palavras e locuções com usos, exemplos, frases e vozes do espanhol usado na Espanha e nos países latino-americanos. Termos captados no continente e agora revestidos de uma nova redação e significados mais amplos.


O novo dicionário, 1.500 páginas, tiragem inicial de 150 mil exemplares, editado pelo Grupo Santillana (20,90 euros) e destinado a facilitar o manejo de textos para alunos de 12 a 18 anos – de alguma forma contribuindo para ‘paliar la pobreza léxica de los jóvenes hispanohablantes’ – foi elaborado por uma equipe de nove filólogos da Espanha e América Latina, ao longo de seis anos, sob a direção da filóloga Elena Zamora e supervisão do acadêmico Manuel Seco, este autor do Diccionario del español actual.


A obra, já nas livrarias da Espanha e com lançamento previsto para o início de 2006 na América Latina, é parte do contínuo e louvável esforço das autoridades lingüísticas espanholas que, com seriedade e constância, vêm editando trabalhos importantes no setor. Por exemplo, garantem para novembro o Diccionario panhispánico de dudas e, para 2007, a nova Gramática do idioma.


O presidente da Real Academia Española, Víctor García de la Concha, resume o problema e a finalidade do novo dicionário:




‘Vivemos hoje num mundo de predomínio audiovisual, que permite pouco tempo para a leitura, a principal fonte de enriquecimento do idioma. Nesse sentido, a situação espanhola é grave. O dicionário não vai melhorar isso, mas sem ele seria pior.’

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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México