Existem muitas maneiras de se ensinar a fazer bom jornalismo. Uma delas, sem dúvidas, é ensinar como se faz o mau jornalismo. Esse é um ponto chave do livro de Umberto Eco Número zero, que se converte, ou converterá, em um manual de como não se deve fazer um jornal, por exemplo. Evidente que concordamos que notícias e verdades não são a mesma coisa quando estão isoladas, como disse Walter Lippmann em Opinião Pública, assim como mentiras e notícias não devem ter relação.
O mais novo livro de Eco se passa em 1992, quando as novas tecnologias passam a despontar e as incertezas do futuro do jornalismo passam a ser certezas inverossímeis e históricas, das que dizem que uma mídia acabará com a outra. O livro se passa em Milão e suas vielas e é ambientado na redação de um futuro jornal, que trará aos leitores o amanhã na edição de ontem, “com artigos aprofundados, suplementos investigativos, previsões inesperadas”. Quem conta a história é o ghostwriter Colonna, que trabalha diretamente com o editor-chefe da publicação, Simei, que na primeira reunião de redação explica o que vem a ser um “número zero”:
“Um número zero pode ter a data que se quiser e pode ser perfeitamente um exemplo de como teria sido o jornal meses antes, suponhamos, quando a bomba explodiu. Nesse caso já sabemos o que terá acontecido, mas vamos falar como se o leitor ainda não soubesse. Portanto, todas as nossas indiscrições terão gosto de coisa inédita, ouso dizer oracular. Ao cliente, nós deveremos dizer: veja como teria sido o Amanhã se tivesse saído ontem. Entenderam?”
Basicamente, os jornais contam as histórias de ontem no amanhã e não ao contrário. O que faz o jornal Amanhã ser um exemplo de mau jornalismo não é necessariamente o fato de tentar contar os fatos de amanhã na edição do jornal de ontem, mas sim, a maneira pela qual se objetiva alcançar esse feito que, além de tudo, ignora o presente. Difamar, chantagear e prestar serviços duvidosos a um proprietário confidencial, através da fofoca e da insinuação, caso algum leitor ou jornal tente desmentir os “fatos” publicados. “Insinuar não significa dizer algo preciso, serve só para lançar uma sombra de suspeita sobre o desmentidor”, ensina Simei.
Nem tudo que se lê em jornal é verdade
A composição do personagem Simei é meramente ética, descaracterizando os históricos personagens de jornalistas na literatura e no cinema e os jornalistas que carregam sua função social pendurada no pescoço. Porém, esse personagem se aproxima da realidade e de alguns perfis de jornalistas da vida real que carregam essa mesma função, juntamente com o código de ética da profissão, nos bolsos. Para ele, insinuar ter documentos e dados de uma fonte que não existe é menos cafajeste que admitir que o jornal não verificou as fontes com o rigor e a objetividade que guiam o trabalho jornalístico, e o processo de noticiabilidade.
Tirando Colonna, que entra no jogo consciente das regras e sabendo detalhes que os demais não sabem, a única que fica atônita com tantas lições diárias de mau jornalismo é Maia Fresia, a única mulher da redação, que conta com seis redatores. Maia questiona os métodos e modo de operação do Amanhã, mas segue o sistema pelo fato real de necessitar do emprego e de se “submeter” ao sistema. Maia é uma vítima de uma redação sensacionalista e sem ética, mesmo sendo ela a responsável por produzir ‘notícias’ de paparazzi, e outras futilidades. Assim como na vida real, o mercado dita as regras.
Inicialmente serão produzidos 12 números zeros com datas escolhidas propositalmente de acordo com o que ocorreu dois dias depois. Nessa parte do livro, é possível associar a redação do Amanhã ao Ministério da Verdade, do livro 1984, de George Orwell, responsável por criar as mentiras estatais do país Oceania, governado pelo Grande Irmão, além de mudar as datas dos fatos, apagar notícias já publicadas, e jogar no buraco da memória pessoas que se tornaram inimigas da “revolução”. O que Orwell imaginou em 1949 acontece com alguns portais e blogs que editam a data e a hora para insinuarem que publicaram as notícias primeiro que a concorrência, ou editam/corrigem seus erros de verificação depois de publicados. Exemplos não faltam.
No plano de fundo das edições que serão produzidas, há um assassinato e a tentativa de desvendar uma teoria da conspiração que diz que Benito Mussolini não foi assassinado ao fim da Segunda Guerra Mundial, mas que se refugiou no Vaticano e se auto-exilou na Argentina à espera de um futuro golpe militar anos depois. O personagem que reúne dados e investiga esse “fato” é Braggadocio. Nesse momento, o personagem flerta com o bom jornalismo investigativo, tentando provar as suposições e hipóteses levantadas como diz o manual, com bravura e rigor, sem medo das consequências que esse fato pode trazer para a história, para sua vida e para os demais redatores do Amanhã, a quem chamar de jornalistas beira a ofensa aos profissionais da área.
Número zero é uma aula de mau jornalismo tão importante de se aprender como as melhores classes de bom jornalismo que se há. O importante de se conhecer as coisas malfeitas reside no fato de não voltar a repeti-las. Assim como em As ilusões perdidas, de Balzac, onde Lucien de Rubempré ascende e cai em desgraça, a lição é ética e moral, imprensa e jornalista, respectivamente, Número zero nos ensina o que já sabemos, ou deveríamos saber: que nem tudo que se lê em um jornal é verdade, apesar de que verdades e notícias coincidem quando sinalizadas e trazidas à luz por um farol no meio do mar, tirando fatos da escuridão e trazendo-os para a claridade, sendo, ou devendo ser, a imprensa o farol da realidade. Se ao trazer fatos à claridade sem pô-los em relação um com outro e não fazendo uma imagem da realidade “com base na qual os homens possam atuar”, notícias e verdades não se relacionam e se tornam, na verdade, um número zero.
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Bruno H. B. Rebouças é jornalista e doutorando em Jornalismo