Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Seriam as big techs os novos gatekeepers

As big techs determinam quais informações aparecerão com destaque para os usuários e quais ficarão escondidas em um contexto de hiperinformação. Imagem: Flickr

O conceito gatekeeping foi afetado de forma significativa pela atual configuração da internet e das grandes empresas de tecnologia. O termo gatekeeper, conhecido no jornalismo como o guardião dos portões, remetia aos profissionais responsáveis por delimitar quais notícias seriam publicadas e quais seriam manchete. Entretanto, a partir do uso massivo das mídias sociais, trabalhou-se com uma reconfiguração das funções desse termo, trazendo a participação dos internautas para as escolhas acerca das informações destacadas, o que inclui as publicações pessoais, os compartilhamentos, os comentários, as hashtags e os likes. Considerando o cenário atual de big techs, com destaque para Google e Meta, essa leitura soa como ingenuidade. São essas empresas, com seus algorítimos obscuros, que decidem o que vamos ver.

Na última semana nós fomos imundados por uma onda rosa da Barbie e, dependendo da bolha, por críticas à cultura Barbie ou por elogios ao filme. Não faz tanto tempo, buscávamos informações sobre o submersível que implodiu com cinco ocupantes e, novamente dependendo da bolha, criticávamos a falta de cobertura jornalística sobre o naufrágio da embarcação com 750 pessoas ou estávamos apenas curiosos com a particularidade do acontecimento. Num círculo vicioso, as big techs destacam temas, as pessoas demostram interesse para saber mais sobre esses temas e o jornalismo corre atrás de mais informações para aumentar o engajamento e para atender a uma demanda embaraçada.

No último mês, enquanto acessamos uma extensa produção de conteúdos jornalísticos pautados pela estreia do filme Barbie, o que foi alicerçado em uma estratégia de marketing muito bem construída nas mídias sociais, tantas outras produções jornalísticas de relevância nacional foram publicadas. Trinta dias antes da estreia do filme, quando a onda Barbiecore já ganhava força, a Agência Pública revelou uma reportagem em que o presidente da câmara dos deputados Arthur Lira é acusado de violência sexual pela ex-mulher. Nos últimos trinta dias, Lira ingressou com uma ação judicial contra a Agência Pública solicitando que a reportagem seja retirada do ar e uma indenização por danos morais. Em outra ação, o deputado também solicitou que o Congresso em Foco retirasse do ar a entrevista com sua ex-mulher. Uma pauta tão importante para as mulheres, o Presidente da Câmara é acusado de violência sexual pela ex-mulher, levou um caldo da onda rosa.

Ainda nos últimos trinta dias, foi noticiado que o Google contratou o ex-presidente Michel Temer para reforçar a pressão no Congresso Nacional contra a PL das Fake News. Além de ex-presidente, Temer é conhecido pela habilidade de negociar com os congressistas, ou seja, ele foi contratado pela empresa para fazer lobby. Nesse mesmo período, também foi noticiado que, com a aprovação da lei que regulamenta as Big Techs no Canadá, Google, Instagram e Facebook vão impedir o acesso a conteúdos jornalísticos no país. As empresas contestam a obrigatoriedade de remunerar os jornais canadenses pelos conteúdos compartilhados nas plataformas. Elas estão se posicionando de forma agressiva contra as tentativas governamentais de regulamentar e fiscalizar as plataformas digitais, dificultando a implementação de políticas que priorizam a responsabilidade e a transparência na Internet.

Enquanto os jornalistas estudam técnicas de SEO para que suas publicações classifiquem nas primeiras posições de busca do Google ou tentam entender os algorítimos das redes sociais para aumentar o engajamento, as big techs determinam quais informações aparecerão com destaque para os usuários e quais ficarão escondidas em um contexto de hiperinformação. Não existe uma transparência nos critérios que embasam essas escolhas e esse cenário é insalubre para a democracia. Colocar a PL das Fake News em evidência, significa mostrar para a população como essas empresas estão usando o seu poder de guardião das informações. Esse projeto de lei não pode virar notícia apenas quando entrar na pauta do congresso, precisa ser reiterado para sanar as dúvidas e mostrar a sua importância. Enfrentamos, então, um desafio: precisamos usar as big techs para circular a informação jornalística, em especial as informações sobre a PL das Fake News, mas como fazer isso sem levar caldo da onda rosa da Barbie ou de outras ondas que ainda serão criadas nas plataformas digitais?

Como a Fabiana Moraes nos lembra, podemos nos divertir com o filme da Barbie, mas não podemos esquecer que: “Nossa distração é pura gasolina para o esperto”. O jornalismo não pode se perder nas distrações criadas pelas big techs, tampouco alimentar essa distração com mais gasolina. Provavelmente, precisaremos do apoio de políticas públicas como a PL das Fake News para romper com esse círculo vicioso e, assim, reconfigurar novamente as funções de gatekeeper no jornalismo.

Reportagem publicada originalmente em objETHOS.

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Sílvia Meirelles Leite é Professora da UFPEL e pesquisadora do objETHOS.