
(Foto: Zac Frith/Pexels)
Há uma proliferação de influenciadores e divulgadores científicos brasileiros que estão numa cruzada contra aquilo que consideram práticas pseudocientíficas e contra práticas religiosas supostamente danosas. Estes influenciadores acreditam que há uma linha clara que separa totalmente a ciência, de um lado, e a pseudociência, do outro lado. No entanto, eles ignoram que a ciência possui muitos métodos distintos e heterogêneos que, com novas pesquisas e novas descobertas, tendem a se modificar. Assim, qualquer tentativa de definição da ciência não pode ignorar a dinâmica da ciência e todas as suas transformações ao longo do tempo. Aparentemente os influenciadores estão defendendo um único método científico em detrimento de outros métodos científicos considerados ineficazes.
Esses influenciadores tendem a ser extremamente pueris quando tratam da religião. Alguns apresentam testemunhos de pessoas que se decepcionaram com alguma instituição religiosa ou sofreram abuso religioso, testemunhos que supostamente comprovam que a religião é predominantemente perniciosa. Outros chegam a lançar desafios e oferecer dinheiro para religiosos demonstrarem alguma habilidade sobrenatural. Mas estas abordagens não vão necessariamente no sentido da educação popular ou da divulgação científica para o público religioso, algo que poderia ser muito proveitoso.
Esses influenciadores e divulgadores científicos geralmente reproduzem ideias extremamente simplistas e pueris a respeito da religião, insistem em comparar as narrativas religiosas com as teses e as explicações científicas. Reproduzem afirmações como: “Deus é uma invenção”, “A Bíblia contém mentiras”, “A Bíblia não foi inspirada por Deus”, “A Bíblia fornece base para a defesa de atrocidades”, “Do ponto de vista científico a Bíblia é um livro muito ruim e não se sustenta”, “Crenças religiosas não fazem sentido”, “A religião é uma muleta existencial”, “Não é possível provar a eficácia da religião”, “As pessoas religiosas tendem a desprezar a ciência”, “A ciência comprova que os espíritos ouvidos por Chico Xavier estavam errados”, “A ciência oferece explicações mais razoáveis para fenômenos considerados milagrosos”, “A ciência pode substituir a religião e oferecer conforto para as pessoas”, entre outras.
É preciso deixar claro que qualquer pesquisador tem todo o direito de refletir livremente sobre a religião. No entanto, espera-se que o pesquisador vá além das afirmações mais banais, esteja minimamente apto para utilizar as contribuições da ciência e para julgar e apreciar distintas abordagens científicas em suas especificidades. Será que as afirmações dos influenciadores são relevantes para a ciência e para refletirmos sobre o papel da religião na sociedade? O que podemos dizer a respeito delas?
“Deus é uma invenção”. Sim. Mas a divindade ocupa um lugar na vida das pessoas, ela acaba se materializando e sendo real no cotidiano de muitas pessoas. Neste sentido, mais importante do que ficar dizendo infantilmente que as pessoas religiosas estão iludidas com algo fantasioso, é refletir como podemos construir uma sociedade melhor com pessoas religiosas convivendo e dialogando com pessoas não religiosas.
“A Bíblia contém mentiras”. “Do ponto de vista científico a Bíblia é um livro muito ruim e não se sustenta”. Estas afirmações são extremamente pueris. Quem disse que uma poesia, um oráculo, uma fábula ou um mito religioso precisa ser cientificamente verdadeiro? Que tal olhar para os textos bíblicos de acordo com os seus gêneros literários? Por que exigir infantilmente alguma cientificidade dos textos bíblicos?
“A Bíblia não foi inspirada por Deus”. Este tipo de afirmação simplesmente não faz sentido. Se uma pessoa afirma que a Bíblia foi inspirada por Deus, ela afirma isto com base na sua fé. Ou seja, é uma questão de fé. Para quem tem fé na inspiração bíblica, há inspiração. Para quem não crê em tal coisa, não há inspiração. Crer na inspiração bíblica não é necessariamente negar que houve esforço humano por parte dos indivíduos e grupos que influenciaram, escreveram, reescreveram e compilaram os textos bíblicos.
“A religião é uma muleta existencial”. “A ciência pode substituir a religião e oferecer conforto para as pessoas”. Não é papel da ciência substituir a religião. A pessoa religiosa não vai buscar um tratamento médico ou uma psicoterapia para substituir sua religião. O tratamento médico e a psicoterapia podem ser conciliados com as práticas religiosas. Por exemplo, a divindade que está junto com a pessoa e ouve suas preces é aquela que dá motivação e força no sentido da continuidade do tratamento médico e da psicoterapia. Os bons médicos e os bons psicoterapeutas sabem utilizar a religião dos pacientes a favor da saúde e do bem-estar.
“Não é possível provar a eficácia da religião”. A eficácia da religião não está necessariamente relacionada com os resultados, as respostas ou os milagres alcançados pelos fiéis. Mas com os motivos que levam as pessoas a persistirem com suas práticas religiosas independentemente dos resultados alcançados.
“Crenças religiosas não fazem sentido”. “A ciência oferece explicações mais razoáveis para fenômenos considerados milagrosos”. Será que essas pessoas se deram conta da estupidez contida nestas afirmações? A pessoa religiosa pode muito bem aceitar as explicações da ciência e, ao mesmo tempo, buscar explicações religiosas para os mesmos fenômenos. Ou seja, a pessoa religiosa pode conciliar duas ou mais explicações. A explicação científica de que o êxtase religioso está relacionado com a ativação de uma área específica do cérebro pode ser aceita, sim, pela pessoa religiosa. E, ao mesmo tempo, ela pode conciliar esta explicação científica com a explicação religiosa que menciona a intervenção da divindade.
Essas ideias simplistas evidenciam a ignorância de diversos influenciadores e divulgadores científicos em relação à religião e às pessoas religiosas. Não se promove a ciência com ideias simplistas que, por sua vez, tendem a culpabilizar as pessoas religiosas. O desprezo à ciência é um problema da sociedade brasileira como um todo, de uma sociedade que não prioriza a educação básica, não prioriza a pesquisa científica, e não valoriza as carreiras dos professores e dos pesquisadores.
Para finalizar, podemos lembrar das palavras de Max Weber: “Uma tomada de posição pode derivar de uma visão única do mundo ou de várias, diferentes entre si” (Weber 1970: 46). Neste sentido, as nossas escolas e universidades têm o papel de colocar os cidadãos em contato com os conhecimentos científicos e filosóficos, e possibilitar a difusão de outras visões de mundo para além das visões de mundo religiosas. Por que os influenciadores não enfatizam o grave problema da desvalorização da educação básica e da pesquisa científica no Brasil?
Referências
Barrio, L. “Religião e espiritualidade influenciam índices de qualidade de vida.” Jornal da USP, São Paulo, 05 dez. 2017.
Serrano, C. “Não há linha clara que separe ciência da pseudociência, diz professor [Michael Gordin] de Princeton.” BBC News Mundo, Londres, 12 dez. 2021.
Weber, M. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1970 [1919].
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Silas Fiorotti é doutor em Antropologia Social, professor colaborador do Centro Universitário FMU, pesquisador do Grupo Áfricas, e coordenador do Projeto Diversidade Religiosa em Sala de Aula.