Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ameaças, escândalos e diretor premiado preso no Irã: balanço final da Berlinale 2020

(Foto: Reprodução Berlinale)

Teve de tudo!

Maior e “talvez” o melhor festival de cinema do mundo, a 70ª Berlinale foi mais uma longa jornada de alguns bons filmes, muitos problemas, alguns escândalos e ameaças.

Se não foi a melhor Berlinale, certamente foi uma das mais controvertidas.

(Foto: Arquivo pessoal)

Teve a ameaça do coronavírus, que assustou os participantes e afastou muitos chineses. Houve manifestações populares contra “quase” tudo, denúncias contra o fundador da Berlinale, Alfred Bauer, que teria participado da máquina de propaganda nazista, e shopping fechado para obras que incomodou muito a correria dos jornalistas em busca dos melhores ou dos mais polêmicos filmes do festival.

A mais recente má notícia da Berlinale 2020 é a iminente prisão do vencedor do festival, o diretor iraniano Mohammad Rasoulou. Ele não não pôde receber o Urso de Ouro de melhor filme e agora há uma campanha mundial para tentar impedir que seja encarcerado em meio à enorme propagação do coronavírus no Irã.

There is no evil (Não há maldade) discute a pena de morte, foi produzido com enorme dificuldade e em total segredo. Veja o trailer. Difícil a vida de cineastas no Irã. Ainda mais quando são competentes, talentosos e premiados.

Novos jornalistas digitais

Mas, apesar dos problemas, a avaliação da Berlinale por seus organizadores foi positiva. A participação do público bateu todos os recordes, com 342 filmes durante os dez dias do evento. Cerca de 22.000 profissionais da indústria cinematográfica de 133 países participaram dos diversos encontros, fóruns e mostras competitivas. É um número impressionante. Nesse grupo de profissionais estão milhares de jornalistas e críticos de cinema de diversos setores da mídia internacional. É evidente, cada vez mais, a predominância dos veículos digitais.

Ainda há muita gente apaixonada por cinema e os grandes festivais são o nosso ponto de encontro anual. É quase uma religião.

(Foto: Arquivo Pessoal)

Este ano, tive o privilégio de encontrar dois dos mais jovens e melhores críticos de cinema brasileiros. Em uma conversa animada antes de mais uma sessão exclusiva para jornalistas, pude conhecer Barbara Demerov, do AdoroCinema, e Bruno Carmelo, do Papo de Cinema. Eles representam muito bem o futuro dessa paixão. São jornalistas com muito experiência, conhecimento e, principalmente, muita dedicação ao cinema. Como costumávamos dizer nos áureos tempos de cineclube dos anos 1960, só há uma coisa melhor do que assistir a um bom filme. É conversar e depois escrever sobre cinema.

Apesar da enorme diferença de idade, é bom saber que ainda temos algo em comum. Somos jornalistas, trabalhamos para meios digitais e adoramos os bons filmes.

O problema é definir um bom filme.

Pessoalmente, procuro sempre me concentrar nos mais alternativos, menos óbvios e mais polêmicos dos festivais. Assisto alguns filmes do mainstream para ter uma referência, mas participar de um grande festival de cinema, como a Berlinale, é, antes de tudo, “garimpar” aquelas produções difíceis, não muito populares, que provavelmente não chegarão ao Brasil. Esses filmes mais ousados e inusitados reservam sempre surpresas. Nem todas boas, mas sempre surpresas.

São os filmes mais polêmicos da Berlinale 2020. Aquelas produções que nem sempre gostamos, que incomodam muito, mas que precisamos saber que existem, que devem ser vistas. Filmes que lançam novas tendências para um futuro incerto. Gostar ou odiar é um outro problema.

Sempre os russos

Segue a minha seleção.

Primeiríssimo da lista foi o filme DAU. Natasha, de Ilya Khrzhanovsky e Jekaterina Oertel.
Muito já foi escrito sobre o projeto Cinema Verdade e a intensa participação dos atores nesse grande projeto. Certamente, tinha que ser russo. Desde os primórdios do cinema, eles nos surpreendem pela criatividade, ousadia e, principalmente, pela coragem de incomodar o público.

O que menos importa no filme é o conteúdo, que retrata um projeto secreto na União Soviética sob a perspectiva de Natasha, pessoa simples que trabalha na cantina e tenta sobreviver às contradições de uma ditadura, às constantes ameaças de violência e tortura. Sobreviver também pode significar tentar se divertir com festas estranhas com muita bebida e ainda mais sexo. Muito sexo explícito.

É o tal processo de produção imersiva defendido pelos diretores.

O filme é uma experiência diferenciada em vários sentidos, principalmente para os atores. Ganhou o prêmio de “excepcional contribuição artística” na Berlinale. Os personagens são complicados e depressivos, a fotografia é lúgubre e os espaços são opressivos. Não é cinema pra se divertir e comer pipoca. É um filme que abre novas fronteiras para a realização cinematográfica. O projeto busca a imersão total dos atores em seus personagens. Um cinema em ambiente de teatro, mas com jeito de pesadelo, que convida o público a espiar pelo buraco da fechadura, a pensar no mundo real em busca de verdade pela ficção. Denso e complicado. Não precisa gostar, mas tem que reconhecer que os russos mais uma vez nos surpreendem e nos incomodam.

Não sei se o filme é bom. Mas gostei muito.

A caminho da Sibéria

Agora, o pior filme da Berlinale. Nada, absolutamente nada supera Siberia, do polêmico diretor italiano Abel Ferrara com um dos maiores atores da atualidade, Willem Dafoe. Ele bem que tenta. É um dos meus atores favoritos. Mas o filme é uma colagem de cenas desconexas que retratam lembranças confusas de um passado ou de um sonho que não faz muito sentido.

Pobre Willem Dafoe. Merecia um filme melhor. Siberia é longo, polêmico, incomoda, mas pode e deve ser evitado. Não vai fazer a menor falta. Aproveite seu tempo para assistir algo melhor. Talvez visitar a Sibéria de verdade.

Cinema, filosofia e aborto

Eu recomendo o filme romeno Malmkrog, de Cristi Puiu.

É uma produção difícil que adapta para as telas a obra complicada do filósofo russo (sempre os russos) Vladimir Soloviov. É o cinema que limita o poder das imagens a espaços restritos e prioriza a oralidade dos personagens. Mas que palavras! Convidados em uma suntuosa mansão na cidade de Malmkrog, no rigoroso inverno da Transilvânia romena do século XIX, discutem temas como morte, anticristo, história, poder, progresso e moralidade. Quer mais?

Cinema com jeito de grande teatro. São quase três horas de muitas, profundas e eternas ponderações sobre a nossa difícil existência nesse mundo. Cinema com C maiúsculo. Super atual. Difícil de assistir, mas vale a pena. O cinema romeno, mais uma vez, incomoda e surpreende.

Deletar o passado?

Outra recomendação de filme alternativo é a produção francesa Effacer l’historique (Deletar o histórico), de Benoît Delépine e Gustave Kervern.

Uma história simples e atual sobre os problemas da vida de europeus entediados no presente digital e sem muitas perspectivas para o futuro virtual. Filmada com pouquíssimos recursos, fotografia quase amadora, mas com bons personagens e grandes atuações.

O filme é polêmico e incomoda porque retrata, mesmo que de forma divertida, as ameaças cada vez mais presentes e constantes de uma realidade incontrolável e incompreensível para a maioria dos meros mortais Somos vítimas ingênuas, incapazes e frustradas diante das promessas digitais.

Se não podemos deletar o nosso passado, talvez possamos ao menos deletar as nossas memórias digitais. É uma proposta difícil, mas não é impossível.

Merece ser visto. É cinema de baixo custo e alto rendimento. Não é muito longo, tem boas atuações, diverte e faz pensar.

Cinema e aborto

Para completar a lista de filmes polêmicos, cito o americano Never rarely sometimes always, de Eliza Hittman.

Nada incomoda mais do que essas alternativas, ainda mais quando tratamos de um tema considerado tão ignorado e proibido no Brasil de ontem e de hoje: o aborto.

Convido os leitores a responder ao questionário tão invasivo e humilhante proposto à personagem principal: “Nunca, raramente, algumas vezes ou sempre?” Pense bem antes de responder.

Para mim, foi o melhor filme da 70ª Berlinale.

Relembra obra-prima sobre o mesmo tema, a produção romena 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, de Cristian Mungiu, em 2007. Se você nunca assistiu, disfarce, assista e discuta com os amigos. Deveria ter exibição obrigatória em todas as escolas brasileiras. Há uma versão completa disponível na rede.

A nova produção americana da diretora Eliza Hittman retrata a “viagem” de uma jovem de 17 anos com sua melhor amiga em busca de uma solução para a gestação indesejada. É um filme polêmico sobre questões atuais.

Raramente ou algumas vezes temos a oportunidade de comprovar que a Berlinale tem problemas, mas ainda é relevante e pode incomodar muito.

Afinal, cinema é sempre uma paixão.

***

Antonio Brasil é jornalista e pesquisador do Instituto Erich Brost de Jornalismo Internacional da Universidade de Dortmund, na Alemanha.