Monday, 06 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Complô da mídia também lá?

Numa pesquisa encomendada pelo New York Times, cujos resultados aparecem hoje no jornal, um em cada dois eleitores propensos a votar num candidato democrata à sucessão de Bush, em novembro deste ano, acha que a mídia americana tem sido mais dura com Hillary Clinton do que com quaisquer outros presidenciáveis.

Predomina entre as mulheres entrevistadas a percepção de que a imprensa é injusta com a senhora Clinton, decerto por causa de seu sexo. Entre os homens, as opiniões se dividem.

A interpretação parece alheia ao fato de que, se o problema existe, a origem é outra. Hillary é uma das figuras públicas mais polêmicas (como diz a mídia quando não quer se comprometer) dos Estados Unidos.

Ela é a mais rejeitada candidata à Casa Branca. Não por ser mulher, em primeiro lugar, mas pelo que são ou parecem ser os seus atos.

Os conservadores a detestam desde que ela tentou emplacar um projeto “esquerdista” de seguro-saúde, em 1993. Passaram a odiá-la quando ela denunciou uma “vasta conspiração de direita” contra o governo de seu marido – antes ainda das suas galinhagens com a estagiária Monica Lewinsky.

Os americanos liberais (como os progressistas são chamados nos Estados Unidos) a incluíram na sua lista negra quando ela apoiou a invasão do Iraque. Mais recentemente, Hillary indicou que que apoiaria também um ataque às instalações nucleares do Irã.

Se todo político é oportunista, Hillary Clinton é isso e mais alguma coisa. Para ser aceita pela América vermelha (estranhamente, a cor designa nos Estados Unidos as áreas geográficas de maioria conservadora), ela fez como uns e outros do lado de baixo do equador: esqueceu o que dizia sobre aborto, casamento gay, separação entre religião e governo.

Virou, mexeu, ela também bate abaixo da linha da cintura. Semanas atrás, a sua gente espalhou a patranha de que o adversário Barack Obama era muçulmano enrustido.

Hillary tem em comum com o marido o talento e o gosto pela embromação – dissembling é o termo comum para isso nos EUA. Mas, diferentemente dele, o político americano mais sedutor desde o ex-ator Ronald Reagan, nos anos 1980, Hillary não faz química com a massa.

Em suma, a visão dos americanos de que a mídia é especialmente severa com ela está correta. Incorreto é dizer que a severidade vem, acima de tudo, de um viés sexista.

P.S.

Na Folha de ontem, a editora internacional Claudia Antunes publicou um texto interessante sobre as atribulações de Hillary. Lá vai:

“Polarizadora, desagregadora, fria, calculista. Todo leitor ou espectador mais ou menos atento dos jornais e das TVs dos Estados Unidos já topou muitas vezes com essa descrição de Hillary Clinton. Que a candidata seja de fato tudo isso é praticamente um consenso, à direita e à esquerda, reforçado por pesquisas que atestam as altas taxas de rejeição da ex-primeira-dama (cerca de 40% dos americanos dizem que não votariam nela de jeito nenhum).

Esse consenso foi construído ao longo dos últimos 20 anos, desde que o casal Clinton fez do Arkansas uma plataforma para chegar a Washington. Ele partiu menos de evidências concretas do que de uma hábil campanha negativa contra Hillary. Com o tempo, porém, passou a ser impossível distinguir o que nela é couraça contra os ataques dos adversários do que é personalidade, o que é adequação ao humor do eleitorado do que são convicções.

Para os ideólogos e estrategistas conservadores que desde o início dos anos 70 vinham definindo uma nova agenda pública para os Estados Unidos, Hillary e Bill Clinton sempre foram anátemas.

Em primeiríssimo lugar, por terem tido sua iniciação política nos anos 60, uma era que a direita pretendia enterrar junto com seus traços de desafio à autoridade, ampliação dos direitos civis, liberação sexual e, não menos importante, humilhação militar.

É impressionante como aquela década ainda impregna o debate político nos Estados Unidos. Quando o juiz Samuel Alito foi apontado por George W. Bush para a Suprema Corte, no início de 2006, sua frase que mais repercutiu durante as audiências no Senado foi uma em que ele criticava seus colegas de faculdade em Princeton em 1969, ‘pessoas muito privilegiadas se comportando irresponsavelmente’.

Essa irresponsabilidade, a depravação, o braço excessivamente protetor do Estado sobre alguns setores da sociedade, tudo isso era para ser derrubado a golpes de ‘valores morais’ e desregulamentação.

Os Clinton foram apanhados nessa onda e, embora ele tenha sido réu em processo por perjúrio que quase o levou ao impeachment, ela acabou sendo o alvo mais fácil. Bill, o que fumou maconha sem tragar, era, além de homem, carismático demais e malandro demais. Paradoxalmente ou nem tanto -uma vez que o que estava em questão era uma mulher da geração do feminismo-, foi a estudante prodígio e advogada bem-sucedida que virou a encarnação maior do mal.

Pelo menos era assim que ela era retratada pelos radialistas histéricos que ajudaram o Partido Republicano de Newt Gingrich a conquistar a maioria na Câmara dos Deputados em 1994, segundo ano do primeiro mandato de Bill Clinton na Casa Branca.

Já afastados de sua matriz conservadora tradicional e sob a hegemonia da direita religiosa, de falcões militaristas e dos chamados conservadores libertários, avessos a impostos e a qualquer versão do Estado de bem-estar, os republicanos fizeram de Hillary personagem de sua campanha de reconquista do poder.

O papel da então primeira-dama na defesa da fracassada proposta de universalização do sistema público de saúde foi exaustivamente explorado. Ela era o Leviatã. Depois, era o Rasputin de saias nos escândalos Whitewater (envolvendo um empréstimo suspeito a uma sócia do casal em empreendimento imobiliário no Arkansas) e Arquivogate, em que foi acusada de ter tido acesso ilegalmente a fichas do FBI sobre ex-funcionários republicanos da Casa Branca.

No caso Whitewater, foi acusada ainda de ter mandado retirar documentos comprometedores do escritório do assessor da Presidência Vincent Foster na noite em que este se suicidou, em 1993. Hillary foi convocada a depor diante de um júri, que nos Estados Unidos decide se acusações feitas pela Promotoria levarão à abertura de processos criminais.

A primeira-dama nunca chegou a ser ré. Mas as investigações contra ela acompanharam os dois mandatos de Clinton e só foram arquivadas em 2000, ano da eleição de George W. Bush. Nesse meio tempo, começou a fazer sucesso no país uma série de panfletos nos quais ela foi comparada até a Madame Mao, a mulher do líder comunista chinês que, após a morte dele, foi convenientemente responsabilizada pelos crimes da Revolução Cultural.

Hillary, como o próprio Bill, acabou convencida de que deveria se adaptar à nova temperatura ideológica americana. Assessorada por magos das pesquisas de opinião, aproximou sua retórica do conservadorismo, mostrando que poderia ser tão dura quanto os republicanos com os inimigos externos e quase se desculpando por ainda apoiar o direito ao aborto. Votou a favor da invasão do Iraque e há pouco tempo deixou claro que poderia apoiar um ataque ao Irã.

É compreensível, como mostraram as votações em Iowa e New Hampshire, que as eleitoras mais velhas do Partido Democrata sejam fiéis a Hillary. Elas também começaram a vida profissional e fizeram suas primeiras opções políticas há cerca de 40 anos.

Mas, numa disputa em que a palavra-chave parece ser ‘mudança’ (embora não se saiba bem para onde, ou se mais de estilo do que de substância), tanto as controvérsias do passado quanto a acomodação política recente da candidata são um fardo.

Além disso, não deixa de ser um indicador da resistência que ainda há a uma mulher na Presidência dos Estados Unidos o fato de os olhos marejados de Hillary, há poucos dias, terem desencadeado uma onda de simpatia, do mesmo modo que ela nunca foi tão popular como primeira-dama quanto no momento em que veio a público a traição do marido.”