Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

Mídia apanha pela razão errada

O cientista político mineiro Wanderley Guilherme dos Santos, que escreve às quartas-feiras no jornal Valor, surpreendeu muitos dos seus pares – e leitores – ao apresentar, no começo do mês, a teoria que atribui a crise da corrupção a uma conspiração das elites e da mídia para debilitar, dobrar e, se for o caso, derrubar o presidente Lula. Para ele os escândalos são artificiais: “Bolhas de sabão”.

Hoje ele acusou a imprensa de disputar com os partidos “o monopólio de dizer o que fazer” com o poder. “A volúpia do poder jornalístico”, escreveu, “se concentra em controlar a pauta dos governos, como controla a pauta de seus repórteres”.

Ora, argumenta, “exigir de um governo mudanças administrativas, ministeriais e a execução de projetos específicos é uma tentativa de compartilhar ou substituir [sic] na prática esse governo”.

O doutor Wandeley deve ter uma alentada biblioteca sobre os fundamentos e o funcionamento dos sistemas democráticos. E decerto há de se considerar um democrata.

Por um motivo e outro, deve saber e achar bom que as democracias serão tanto mais… democráticas, quanto mais nelas houver espaço para os famosos “freios e contrapesos” à autoridade do Executivo.

Ele também há de saber que nas democracias modernas fazem parte desse sistema não apenas o Legislativo com os seus partidos e o Judiciário com os seus poderes de arbitragem, mas também as organizações da sociedade e os meios de comunicação.

O pão-com-manteiga da democracia

Esses atores, como gostam de dizer os colegas de ofício do professor Wanderley, têm duplo papel. De um lado, frear a “volúpia de poder” de todo governo, em especial daqueles derivados do “presidencialismo plebiscitário”, como o nosso. De outro, pressionar administradores e legisladores para que façam isso em vez daquilo.

Esse jogo de pressões e contrapressões é o pão-com-manteiga da democracia, que não existe para abolir conflitos, mas para permitir que se exprimam de acordo com regras de jogo legitimadas pelo consenso da sociedade.

Se tudo parece um tanto óbvio, paciência. Mas é preciso passar por isso para virar de ponta-cabeça o raciocínio do cientista e repôr as coisas nos devidos lugares.

O seu primeiro erro, a meu ver, está em raciocinar em bloco. Para ele – e, a bem da verdade, não lhe falta companhia nisso –, a mídia é um monolito compacto, uma igreja sem heresias, um partido sem dissidentes, um time que sempre joga um jogo de antemão combinado entre os jogadores. E o jogo é sempre e exclusivamente o dos interesses das elites (que, de resto, jamais são conflitantes ou contraditórios).

Para sair das abstrações conceituais e pegar à unha o que parece tirar o sono do professor – a participação da imprensa na presumido processo de desestabilização do governo Lula, para levar o presidente a capitular ao poder econômico ou a cair fora –, é como se Folha, Estado, Veja e Globo marchassem em ordem unida e atirassem, juntos, no mesmo alvo – o Planalto.

Se assim fosse, o nesse caso insuspeito deputado Roberto Jefferson não diria que a Rede Globo, o jornal O Globo e a revista Época são o “Diário Oficial” do Planalto. E teria sido recebido com risos quando atribuiu ao então ministro José Dirceu o comentário de que nas organizações Globo “dá para acertar por cima” (o que não seria possível na Veja “tucana”).

”Interlocutor afônico”

Quem trabalha na mídia e tem olhos de ver o que ela divuga sabe que as coisas podem até não ser tão esquemáticas assim. Mas sabe também que imaginar uma mídia unânime ou, na outra ponta, maniqueísta, é não entender da missa a metade (geralmente por causa do vício de impedir que míseros fatos venham a estragar belas teorias).

Isto posto, vamos ao segundo e essencial erro do articulista. Se há um problema com a mídia brasileira, nesse plano, não é ela querer pautar o governo como pauta os seus repórteres.

A imprensa, que no próprio ato de informar, comentar, debater e opinar assume um lugar na mesa de decisões de governo – por delegação implícita de seu público – faria menos do que pode e deve se se comportasse como figurante, ou, para retomar em outro contexto uma expressão do sociólogo Fernando Henrique, como “interlocutor afônico” do poder.

O problema é que a imprensa pauta pouco – e mal – os poderosos, como frequentemente acontece com os seus repórteres. Desperdiça muitas vezes a legitimidade de que é detentora para expor, criticar e apresentar alternativas, por ficar na superfície das questões, refém de um varejo que a impede de enxergar a floresta por causa das árvores.

Nos Estados Unidos, para comparar, a imprensa capitulou, como diria Wanderley, diante da direita que a acusava de “viés liberal”. Para parecer imparcial, acabou sendo cúmplice de uma guerra criminosa baseada em premissas fraudulentas.

O New York Times, por exemplo, atacava em editorias a invasão do Iraque em preparo, enquanto – como viria a admitir depois que Inês era morta – no noticiário, bancava em caixa alta a lorota das armas de Saddam e soterrava as informações que podiam colocá-la em xeque.

Ser partido ou tomar partido

Tivesse o mais influente jornal do mundo “exigido de um governo mudanças administrativas, ministeriais e a execução de projetos específicos”, conforme Wanderley, ou, no caso, a não execução de projetos específicos, teria feito um bem do tamanho de sua importância como formador de opinião.

Vamos nos entender. Jornal não é partido (embora jornais partidários, à moda da velha Europa, façam uma falta danada). Mas isso não quer dizer que não deva tomar partido diante dos atos da autoridade.

Tomar partido não é apenas vaiá-los ou aplaudí-los em editoriais. É debulhá-los no noticiário, dando conta, no limite de sua capacidade, do seu contexto e de suas implicações, para que o público interessado os domine – e tome partido a respeito.

O erro final do cientista político, mais estranho do que crasso, foi falar em “monopólio”. A imprensa, transcrevi acima, estaria disputando com os partidos o monopólio de dizer ao governo o que fazer. Desde quando os partidos têm esse monopólio?

Olhe em volta, professor, e verá uma multiplicidade de forças sociais, todas elas querendo se exprimir pela imprensa, porque do contrário não serão ouvidas, tratando de compartilhar, sim, o governo naquilo que lhes interessa.

Certa vez ouvi de um conservador alemão que a democracia ideal é aquela que proporciona ao povo oportunidades periódicas de escolher livremente os seus dirigentes – e, entre uma eleição e outra, garante que os eleitos serão deixados em paz para fazer o seu trabalho.

A menos que o politólogo Wanderley Guilherme dos Santos também ache isso, o que não me passa pela cabeça, deveria cobrar da imprensa mais – e não menos – presença política, espírito crítico e desvendamento das decisões de Estado que afetam profundamente a sociedade.