Sunday, 19 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1288

Nós e eles – e a mídia

Uma reportagem da jornalista Eliane Cantanhêde na Folha de hoje me faz pensar que a imprensa se ocupa menos do que devia de uma feia realidade nacional. Embora não seja exclusivamente nacional e já tenha sido pior no passado, é um dos divisores de águas entre o Brasil e os países socialmente avançados, com os quais gostaríamos de nos parecer.

A realidade são as injustificáveis diferenças entre nós e eles. Nós somos nós, a população. Eles são a elite do poder – a estatocracia.

Para evitar mal-entendidos: não me conto entre os defensores do Estado mínimo e me conto entre os defensores da existência de um robusto corpo de servidores públicos topo de linha, não menos bem pagos e respeitados do que os seus semelhantes no setor privado.

Isto posto, as diferenças entre nós e eles podem até embutir uma questão de vida ou morte.

Eliane Cantanhêde descobriu que o Campo de Marte, em São Paulo, de onde levantou vôo o Learjet 35 que instantes depois causaria a morte de seus dois pilotos e de seis moradores das vizinhanças, “é proibido para aeronaves iguais às que a Aeronáutica usa para transporte de ministros e outras autoridades federais”.

A jornalista ouviu de um brigadeiro que “há um rigor maior [na segurança de vôo] para as autoridades, e os limites e parâmetros para permitir vôos e decolagens são muito mais restritivos.”

Vá contar isso a um escandinavo, ou mesmo a um alemão, para ver como arregalariam os seus olhos azuis.

É muito pior do que os ministros conhecerem só de ouvir falar o que se passa nos aeroportos brasileiros porque eles só voam nos jatinhos da FAB. E como voam!, mostrou o Globo de domingo.

E vejam só o argumento para a mordomia salva-vidas que impede suas excelências de usar aeroportos como o de Marte, na capital paulista:

Um dos motivos da proibição é que os jatos do governo não tem reversor, equipamento que auxilia a frenagem em pistas curtas. E não tem porque encarece e aumenta o peso do avião.

Pois eu, contribuinte, não protestaria se soubesse que um farelo dos meus impostos ajuda a pagar a conta de equipamentos do gênero para a parte da frota da FAB que não os tem.

Se algum jornal teimasse de querer pautar, apurar e publicar todo dia uma amostra das diferenças entre nós e eles, como essa, não correria o risco de ficar com um espaço em branco. E quem sabe, apenas quem sabe, depois de algum tempo, diminuiria o abismo entre os mais iguais que os iguais e nós outros, meros iguais.

P.S. O terceiro mandato e as segundas intenções

Me ocorreu uma hipótese para a atitude daqueles setores da mídia que ficam enchendo a bola do factóide da re-reeleição do presidente Lula – digam ele e os seus quantas vezes quiserem que a idéia é uma “insensatez pura”, “sarna para se coçar” [Lula] e “fora de qualquer padrão democrático” [Jaques Wagner, o governador petista da Bahia] só para citar o que está nos jornais de hoje.

Wagner, por sinal, foi mais longe. “Se houver qualquer movimento nesse sentido, eu me insurgiria contra”, afirmou [não se dando conta de que ninguém se insurge a favor, mas isso é detalhe].

Quando os pefelistas, renascidos democratas, e a banda tucana contrária à aprovação da CPMF invocam o espectro do terceiro mandato, é para ter um argumento em defesa de seu oposicionismo, no caso – como se fosse possível, por falar nisso, acabar com o imposto do cheque de uma só canetada, supondo que o certo fosse acabar com ele.

Mas as segundas intenções de parcelas da mídia me parecem outras. Elas torcem – e essa é minha hipótese – para que Lula embarque nessa canoa.

Primeiro, para “desmascarar” o chavista que ele traria dentro de si.

Segundo, para ter o que dizer contra ele, nesse período em que o noticiário econômico só traz coisas boas.

Terceiro, para tornar a endurecer o velho anti-lulismo da classe média, que ficou flácido exatamente por causa do espetáculo de crescimento em cena. [A propósito, quanta gente mesmo foi ao recente ato público contra a CPMF, no centro de São Paulo?]

Quarto, para acuar o seu governo, tendo em vista a sucessão de 2010.

O eventual leitor há de saber que se tem uma coisa que abomino são teorias conspiratórias. Mas, ou muito me engano, desta vez “aí tem”.