Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

O asco, o asco

Desde que o general João “Prendo e Arrebento” Figueiredo deixou o Palácio do Planalto pela porta dos fundos, há 20 anos, nem em pesadelo eu poderia imaginar que o plenário da Câmara dos Deputados, a casa do povo das democracias, serviria para de palco para a apologia da tortura.

O que se passou ontem ali não foi um horror, um horror, as últimas palavras do aventureiro Kurtz do romance de Joseph Conrad “Coração das trevas”. Foi um asco, um asco.

Numa sessão solene em homenagem aos militares mortos na repressão à guerrilha do Araguaia, em 1972, pedida e presidida pelo deputado gorila Jair Bolsonaro, do PP, e naturalmente transmitida pela TV Câmara, o coronel da reserva Lício Augusto, que chefiou o combate ao movimento armado do PC do B, ultrajou a tribuna da Casa, ao se dizer arrependido de não ter dado “uma facãozada, uma bolacha” no guerrilheiro José Genoíno.

Não é de hoje que a gorilada espalha que o atual presidente do PT delatou companheiros mesmo sem sofrer qualquer violência. A infâmia obrigou ontem o ex-deputado a, mais uma vez, recapitular as torturas a que o submeteram os milicos – uma tortura renovada, como sabem todos quantos, em qualquer tempo e lugar, passaram pela experiência de relatar as bestialidades por que passaram.

Compreendo que a imprensa tenha pedido a Genoíno para contar o que passou. Mas ninguém deveria lhe perguntar se, sob sevícias, “abriu” algum nome. Ele negou e perguntou aos repórteres: “Aqui ninguém sabe o que é ser torturado, né?”

”Não importa minimamente” o que ele fez, argumenta hoje, coberto de razão, o colunista Clóvis Rossi, da Folha de S.Paulo. “Crime”, escreve, “é tratar de vender a idéia de que o errado não é torturar, mas delatar”.

Os porões e o Congresso

Rossi não considera um “episódio menor” as repulsivas tentativas de manchar o caráter de José Genoíno. Infelizmente, a Folha, assim como o Globo, deram ao convescote dos torturadores de ontem um espaço mínimo. Dos três grandes, só o Estado deu-lhe o devido destaque. Com a boa idéia adicional de ouvir o líder do PFL na Câmara, Rodrigo Maia, que considerou “descabido” o tom do evento. “Esse tipo de coisa”, ressaltou, é ‘muito ruim para a imagem da instituição”.

A boa notícia está apenas no Globo: havia só três deputados em plenário.

A má notícia é que os únicos colunistas políticos a se ocupar do acontecimento foram o já citado Clóvis Rossi e Dora Kramer, do Estado. Os dois foram direto ao nervo do problema: as atitudes do deputado Bolsonaro. Na quarta-feira, ele interrompeu aos gritos de “terrorista” o discurso de reestréia na Câmara do ex-ministro José Dirceu. Ontem, sugeriu que o comandante do Exército,Francisco Albuquerque, ausente da comemoração macabra, não era homem.

Assim como Rossi, Dora primeiro investiu contra a difamação de Genoíno. “Ele não deve explicações, não está sob julgamento e não é humanamente aceitável que seja obrigado a reviver episódios superados pelos fatos, sendo a anistia o mais definitivo deles.”

Rossi cobrou dos deputados a leniência diante de Bolsonaro: não se cogita de submetê-lo ao Conselho de Ética. Dora foi além: “Antes que seja tarde, conviria ao presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, tomar uma providência em relação à conduta do deputado Jair Bolsonaro. Ultrapassa todos os limites da falta de decoro pessoal e parlamentar.”

É mais do que óbvio do que um mandato legitimamente obtido – por um processo que os golpistas de 64 se empenharam em tornar um arremedo de democracia – não autoriza nenhum bolsonaro a querer equiparar o Congresso aos porões da repressão onde eles decerto se sentiriam no seu habitat natural.