Saturday, 18 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1288

O non e o nee na mídia

Embora previsível como o resultado do referendo francês sobre a Constituição da União Européia, a sua repetição na Holanda reforçou na mídia internacional a idéia de que o non de domingo e o nee de ontem representaram um repúdio à própria integração européia, mais do que ao tratado propriamente dito.

Se assim é, não estariam de todo errados os jornais brasileiros que na segunda-feira “se puseram a rezar a missa de corpo presente da União Européia”, como escrevi no Observatório da Imprensa, fazendo coro com o que sustentou Alberto Dines no programa de rádio do OI daquele dia: “Não há razão para dizer que o “não” francês colocou em risco ou em xeque a unidade européia. Foi um contratempo, mas não há uma crise.”

Hoje me parece mais prudente qualificar as coisas. Continuo a pensar que é cedíssimo para dizer que a Inês européia é morta. (Embora desde o desmanche da União Soviética, depois de 80 anos, eu tenha ficado mais cético em relação à irreversibilidade dos grandes processos históricos.) E o Dines está certo ao criticar o alarmismo dos títulos que falavam em “risco” ou “xeque”.

Mas arrisco a hipótese de que a derrota do sim está mais perto de significar uma crise do que um contratempo. Não me refiro ao “estado de choque” em que se encontram os líderes europeístas, ressaltado pelo semanário francês Le Nouvel Observateur. Nem à consequente sensação de não saber para onde ir em que mergulharam os dirigentes da EU, descrita pela Folha de hoje na matéria “Bloco à deriva se perde na confusão”.

A crise, se é de crise que se trata, talvez consista essencialmente na incapacidade dos europeístas de curar as decepções e apaziguar os temores que influíram na decisão de voto de parcelas decerto ponderáveis dos 55% dos franceses e 62% dos holandeses que se manifestaram contra a Constituição.

Ao falar em temores e parcelas, tento circunscrever o campo do problema, excluíndo dos nãos os que aproveitaram a ensancha antes de mais nada para acertar as contas com os respectivos governos – o que pesou toneladas no caso francês – e os antieuropeístas ideológicos, como os eurocéticos e a direita nacionalista e xenófoba, ativa pelo menos em toda banda ocidental da UE.

Meu público-alvo, por assim dizer, são os eleitores do Partido Socialista Francês. Em mais de 60% dos casos, eles deram uma banana para os seus líderes que, com a solitária exceção de Laurent Fabius, os instigavam a dizer oui, pouco importando se isso seria bom ou mau para o governo Chirac, mas porque a Europa unificada é o progresso, e o progresso é de esquerda.


O voto de toda essa gente bem pensante significa que ela deixou de acreditar na premissa maior do silogismo.

De um lado, por ter passado a compartilhar a revolta do europeu comum com a autoridade dos olímpicos “burocratas de Bruxelas”, os administradores da integração que não foram eleitos por ninguém e a país nenhum prestam contas de seus atos.

De outro, pelo desencanto com o opaco processo de decisão política no interior do bloco, tornando impalpável nele o conceito de democracia.

De outro ainda, por aquilo de que a imprensa se ocupou largamente: o medo de que o enraizamento da integração européia será a erradicação do termo “social” da expressão “economia social de mercado” – sob assédio das políticas neoliberais que impedirão os Estados de oferecer alguma forma de proteção contra o implacável turbocapitalismo atual, além de serviços públicos que sejam serviços bons e efetivamente públicos.

Escreve Richard Bernstein no New York Times de hoje: “Os partidos governantes de esquerda e de direita estão dizendo as mesmas coisas às suas populações: as dolorosas reformas econômicas de livre-mercado são o único caminho ao rejuvenescimento, a mais empregos e futuro melhor. E as populações, para as quais a idéia de uma Europa expandida equivale a um desafio às proteções sociais do berço ao túmulo, estão lhes dando a mesma resposta: não acreditamos em vocês.”

Essa, segundo ele, é o fundamento da “animosidade, talvez até rebelião, contra as elites políticas na França, Alemanha e Itália”. Ou seja, não, ou não só, pelo que seriam os seus erros ou a sua incompetência no plano doméstico, mas porque o futuro para o qual eles querem a adesão do eleitorado os assusta. Tudo que já vai mal ficará pior com as reformas pró-mercado embutidas na Constituição da UE.

Um estudioso adepto da liberalização, em Munique, se queixou ao jornalista do Times: “As elites intelectuais na Alemanha defendem o liberalismo econômico em um punhado de jornais, como o Frankfurter Allgemeine Zeitung ou o Süddeutsche Zeitung. Mas o resto da elite encara a questão do ângulo da solidariedade social, de como preservá-la em face da reforma.”

Então, o problema não é ser alarmista ou comedido em face da aptidão das lideranças européias em desvencilhar a UE do imbróglio constitucional. É reconhecer as suas enormes limitações em (re)conquistar a adesão popular para um projeto europeu amplamente desacreditado. Isso, para dizer o mínimo, não é bem um simples acidente de percurso.