Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Para quem é pobre, bacalhau basta

Pode parecer coisa pequena – e, se parecer, é por se estar habituado a achar satisfatório um padrão de reportagem política para lá de insuficiente.


 


É o que se baseia na má idéia de que uma história de bastidor vale, afinal, por si mesma, quando o jornal que a publica é tido como sério e o jornalista que a narra, honesto.


 


Leia-se a matéria “Aproximação política interessa a Lula e a Serra” [íntegra abaixo] do repórter Kennedy Alencar, na Folha de hoje.


 


Nas suas 105 linhas de coluna, o texto diz no que consiste essa aproximação e por que interessa ao presidente do PT e ao governador do PSDB.


 


As informações e conjecturas são verossímeis.


 


A reportagem parte do encontro – noticiado – que Lula e Serra tiveram quinta-feira, a pedido do tucano. Acrescenta, aos assuntos da audiência solicitada, que o governador voltou a São Paulo no AeroLula, com o próprio. E o que conversaram a bordo – ou, pelo menos, a suposta parte da conversa que “auxiliares do petista” relataram ao repórter.


 


A propósito: é costume na cobertura política da imprensa brasileira ouvir-se uma fonte e referir-se a ela no plural para dar mais robustez às matérias. Até porque a fonte não será identificada, e nem se dará ao leitor o serviço, de há muito corriqueiro nos grandes jornais americanos, de dizer por que o [a] informante não quis ter o nome publicado.


 


Considerando o retrospecto, portanto, os “auxiliares” do presidente podem perfeitamente bem ser um: quem sabe o número 1 da comunicação do Planalto, ministro Franklin Martins – nas insondáveis circunstâncias, livre pensar é só pensar, diria o Millôr.


 


A partir daí, presumivelmente com base na[s] mesma[s] fonte[s], o jornalista transporta o leitor para o que passa pela cabeça do presidente em relação ao grande ano de 2010.


 


“Lula sabe”, se lê em dado momento, “que Serra será um eventual candidato hostil ao governo, mas acredita que o nível dessa agressividade possa ser ‘civilizado’.”


 


Lula sabe, Lula acredita. É possível, se não provável, que o repórter saiba do que está falando. Se assim é, deve-se acreditar nele.


 


É o que basta? Antigamente, quando a iguaria custava uma ninharia, a boa elite patrícia dizia que “para quem é pobre, bacalhau basta”.


 


Difícil dizer quanto o leitor brasileiro do noticiário político está acima ou abaixo da proverbial linha da pobreza informativa, no caso. Mas não há nem um pingo de dúvida de que, sempre nesse sentido metafórico, ele é mais pobre do que os seus semelhantes americanos, pelo menos os que se abastecem do jornalismo premium oferecido pelo New York Times, Wall Street Journal e Washington Post.


 


A tradição e a competição explicam.


 


Imagine o pobre se, apesar de toda sua credibilidade construída em 40 anos de furos memoráveis, o decano do jornalismo investigativo dos Estados Unidos, Seymour Hersh, se permitiria tamanho descaso com o seu leitor, deixando de caracterizar até o limite do possível as suas fontes anônimas, quando denunciou as torturas americanas no presídio de Abu Ghraib, em Bagdá – para citar apenas a mais poderosa bomba atômica que ele despejou sobre Washington em anos recentes. Ou imagine se o editor da semanal New Yorker, onde escreve, deixaria barato se ele o fizesse.


 


Mas passemos.


 


Ainda percorrendo o cérebro presidencial, o texto descreve o que seria o “cálculo político do petista”: uma transição para um eventual Serra sucessor tão mansa como a de Fernando Henrique para Lula.


 


Por quê? Responde sibilinamente o jornalista:


 


“[…] Lula nunca investigou os atos da administração anterior. Uma boa relação com Serra poderia garantir o mesmo ao petista.”


 


A propósito, mais uma vez: não há como saber se essa é a meta do presidente, na hipótese de ele não conseguir emplacar o [a] seu [sua] candidato [a]. Mas, desde a época, se dá como certo que foi isso mesmo: um pacto de não-agressão entre o tucanismo sainte e o petismo entrante no Planalto, sob a égide do ditado “O que passou, passou”.


 


Passemos também, mais uma vez.


 


Além do desejo de uma transição suave, a tomografia jornalística da massa cinzenta do presidente revela que ele conta com Serra “para ajudar o governo a amainar a oposição tucana no Congresso, especialmente no Senado” – o que, termina o repórter, nem Aécio Neves, políticamente mais próximo de Lula, tem conseguido.


 


Ao leitor não se proporciona nem o “pálido indício” do clássico lugar-comum de quem seria o operador do tomógrafo. O bacalhau com que o pobre consumidor de informação deve se contentar é “A Folha apurou que…”.


 


E a versão serrista da conversa? E o “cálculo político” dele? Nem o tal do pálido. Será coisa pequena não se encontrar na matéria um parágrafo que comece com “Segundo auxiliares do tucano”?


 


À falta disso não se acusará de injusto o leitor que suspeitar que o repórter se limitou ao[s] auxiliar[es] “do petista”. Ou pior ainda, que concluir que, bem espremida a reportagem, o seu sumo é o que o Planalto queria que fosse.


 


A história inteira:


 


“O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o governador de São Paulo, o tucano José Serra, dão demonstrações de que querem estreitar uma parceria política que dê frutos em suas administrações e manter uma ponte que seria útil em 2010, ano da sucessão do petista.


 


Na quinta-feira, a pedido do governador, Serra e Lula tiveram um encontro em Brasília no qual trataram de assuntos administrativos, econômicos e políticos.



Serra pediu a Lula que prorrogasse concessões de usinas da Cesp (Companhia Energética de São Paulo), estatal que pretende privatizar. Tratou com o presidente de um terceiro aeroporto em São Paulo -a ampliação de Viracopos (Campinas). E viajaram juntos para São Paulo no avião presidencial, a convite de Lula.


Segundo auxiliares do petista, os dois falaram de economia. Serra voltou a demonstrar preocupação com o câmbio. O tucano avalia que a valorização do real pode gerar uma crise econômica ainda no mandato de Lula. Para o governador, se o Banco Central não reduzir os juros, o real continuará excessivamente valorizado. Medidas pontuais, como as recentemente tomadas para estimular setores exportadores, teriam efeito limitado.


O presidente disse que estudaria os pleitos administrativos de Serra. Lula também se preocupa com o câmbio. O petista não gostou, por exemplo, de o BC ameaçar subir os juros. Teme que, se o fizer, o dólar caia ainda mais.


Lula investe no projeto presidencial da ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) como opção número 1. A número 2 é o ex-ministro Ciro Gomes, deputado federal pelo PSB. Lula sabe que Serra será um eventual candidato hostil ao governo, mas acredita que o nível dessa agressividade possa ser ‘civilizado’.


Nas pesquisas atuais, Serra é o presidenciável mais bem posicionado. Ele enfrenta uma disputa interna no PSDB contra o governador de Minas, Aécio Neves.


No cálculo político do petista, um acordo de cavalheiros com Serra, caso ele venha a ser seu sucessor, pode garantir uma saída tranqüila da Presidência. O exemplo seria o acordo que Lula e o então presidente e tucano Fernando Henrique Cardoso costuraram na transição de governos em 2002.


Apesar do discurso de ‘herança maldita’, Lula nunca investigou atos da administração anterior. Uma boa relação com Serra poderia garantir o mesmo ao petista.


A Folha apurou que, na avaliação do presidente, Serra poderia ainda ter um papel para ajudar o governo a amainar a oposição tucana no Congresso, especialmente a feita no Senado. Serra apoiou a prorrogação da CPMF, mas o PSDB, depois de ter votado a favor na Câmara, fechou questão contra no Senado.


Na comparação com Serra, o governador de Minas tem maior proximidade política com Lula. No entanto, também não consegue diminuir a intensidade da oposição tucana no Congresso.’