Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Carioca, graças a Deus

Nada parecido com o fino humor x acidez dos debates Hillary x Trump nos Estados Unidos, os embates Crivella x Freixo deixam o país em estado de alerta até o resultado das urnas amanhã no Rio. Com uma diferença, Crivella escapou do face a face com o adversário. Não é o único estado onde haverá segundo turno. Nem o único onde o prefeito assumirá um estado falido. Nem tampouco o único onde os protestantes apostam o poder de fogo dos seus 42 milhões fiéis no país para eleger um prefeito. Mas o Rio, é o Rio, com sua importância simbólica, histórica, política , caixa de ressonância do resto de um país cada vez menos católico.

E o que pode ressoar das urnas neste domingo? Se Marcelo Crivella ganhar, o Rio será o único estado não católico do país. Se Marcelo Freixo vencer a parada , a ex-Cidade Maravilhosa será o único reduto a aglutinar o que sobrou das esquerdas no Brasil.

Como Michel Temer e o Planalto reagirão na convivência com um estado evangélico ou com outro assumidamente de esquerda?

Marcelo Crivella, 59 anos , PRB, foi taxado de camaleão. Pastor evangelizador e cantor gospel com 15 CDs, é engenheiro mas já foi taxista, office boy, escritor, senador e ministro da Pesca de Dilma Roussef,  embora tenha votado pelo impeachment . Sobre sua atuação no ministério ficou registrado um feito num vídeo. “Quando a gente precisa de dinheiro a gente pesca o peixe que o peixe, na boca, traz a moeda. Ganha a alma que você vai ganhar a oferta”, disse.

Chama os jornalistas de “vagabundos” depois que a imprensa veiculou a delação premiada do ex-diretor da Petrobrás , Renato Duque, que o envolveu na Lava-Jato, e uma foto onde aparece preso numa delegacia por um dia em 1990 quando tentou desocupar um terreno da Igreja Universal do Reino de Deus. É apoiado pelas milícias, a extrema direita. Mora na endinheirada Barra da Tijuca mas tem o voto da população mais pobre da cidade. É contra os homossexuais e a favor da mulher submissa. Na última pesquisa IBOPE recebeu 46 % das intenções de voto.

Marcelo Freixo,49 anos nascido em Niterói, tem o apoio da classe média, da zona sul do Rio e dos padres. Professor de história filiado ao PSOL, cumpre o terceiro mandato como deputado mais votado do Brasil em 2014 (350 mil votos). Foi retratado no filme Tropa de Elite como o professor ativista de Direitos Humano, Diogo Fraga. Vive cercado por uma escolta policial desde que presidiu a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa de 2008. Prega um estado laico “que convive com todas as crenças”. Na última pesquisa IBOPE tinha 29 % das intenções de votos. É apoiado por Chico Buarque, Caetano Veloso, Marieta Severo, Paulinho da Viola, e suas inserções são dubladas por Wagner Moura. Crivella conta com os artistas da Record ligada à IURD além de Ítala Nandi, o produtor de cinema Luis Carlos Barreto, Carlos Vereza — todos vislumbrando uma volta do PT se Freixo for prefeito.

A desconstrução política

Nessa campanha de desconstrução, os brasileiros reviveram o desconforto do chute na santa por um bispo da Igreja Universal, o trauma da política com fanatismo, a explosão da violência, a falência e a instabilidade da cidade , cem lojas de portas fechadas na gloriosa Ipanema ( a da Garota). Crivella diz que Freixo lembra Hittler, vai ter apoio do “sanguinário” Fidel Castro, impor a ditadura dos bolcheviques. Freixo diz que Crivella vai enfiar o país nas Cruzadas da Idade Média, reavivar o que o adversário chama de “espíritos imundos”, ” doutrinas demoníacas”. Essa campanha do medo afasta os jovens e mantém os votos brancos e nulos em 22%.

Enquanto o aparelho de segurança e o sistema público de saúde do Rio, e até o teleférico do Alemão, entram em colapso, sem falar nos hospitais sem leito e nas escolas sem leite, descobre- se o brilho de um anel Van Cleef adquirido nas terras chiquérrimas de Grace Kelly, o Principado de Mônaco, no valor de R$800 mil reais ofertado pelo empreiteiro Fernando Cavendish à então Primeira Dama , mulher de Sergio Cabral. Como Arnaldo Jabor escreveu em O Globo, o Rio virou uma “sopa de bode preto… um labirinto bárbaro de corrupção e ineficiência burocrática: estamos diante de uma cidade quebrada…Quem vai regenerar? O bispo Edir Macedo , através de seu preposto [sobrinho] Crivella, o irmãozinho de Garotinho?”

No dia 30 de outubro, o carioca vai colocar fé nos evangélicos ou praticar o desenterro da esquerda acreditando que um ou outro partido será capaz de devolver a glória passada de um mito do “savoir-vivre”, o Rio da vida humanizada e da galhardia, quando como cantou Tom Jobin, Ipanema era só felicidade.

O resto do país vai dormir esta noite rezando ou aliviado como o economista Joel Pinheiro da Fonseca que escreveu na Folha o artigo que doeu nos conterrâneos,  intitulado ” Graças a Deus por não ser carioca”.

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Alberto Dines é jornalista, escritor e co-fundador do Observatório da Imprensa