Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Como a forma de falar sobre a pandemia vem nos colocando no escuro

(Foto: Freepik)

Antes da troca ministerial, boa parte dos holofotes esteve voltada para as coletivas de imprensa protagonizadas pelo Ministério da Saúde, fazendo ver um aumento diário de dois números bastante específicos.

Esses são números que medem coisas que estão apenas relacionadas à quantidade total de casos e à quantidade atual de mortes por covid-19 no Brasil, não se confundindo em exatidão com essas duas variáveis.

Mesmo assim, os grandes grupos de mídia reproduzem dia a dia esses números em seus veículos: “com X casos, Brasil alcança hoje Y mortes por coronavírus”.

Assim, pouco a pouco, esses indicadores vão assumindo o lugar do todo, o que nos deixa no escuro.

Quantidade de mortes

Há um considerável atraso entre a data efetiva do óbito e a data em que o Ministério da Saúde é notificado sobre ele, conforme ilustra a Figura 1.

Figura 1: Quantidade de mortes por covid-19 no Brasil

Fontes: Mortes por data de notificação (covid.saude.gov.br), mortes por data de óbito (transparencia.registrocivil.com.br). Elaboração dos autores.

Esse atraso faz com que a forma padrão de se falar e pensar sobre as mortes por covid-19 no Brasil esteja atrasada em uma semana, em média.

Então, quando se noticia alarmantemente marcos como 2.000, 3.000 ou 4.000 mortes, é provável que esses marcos tenham sido ultrapassados pelo menos uma semana antes.

Quantidade de casos

Como se isso não bastasse, há ainda o incômodo problema da baixa notificação de casos no Brasil.

Esqueçamos, por um momento, que há casos notificados, e tentemos estimar a quantidade total de casos no Brasil apenas a partir do número de óbitos.

Especialistas já desenvolveram muitas maneiras de fazer isso. Uma delas [1] considera uma letalidade de 1,08%, já ajustada à pirâmide demográfica do Brasil, e a aplica a um prazo de dez dias para desfecho de casos.

Esse método de cálculo resultaria em uma estimativa de 667.339 casos de covid-19 no Brasil até 26 de abril de 2020.

Agora, recordemos novamente que há casos notificados e contrastemos esses casos notificados com estimativas como esta que fizemos, revelando a diferença ilustrada na Figura 2.

Figura 2: Quantidade de casos de covid-19 no Brasil

Fonte: Casos notificados (covid.saude.gov.br), estimativa (calculado conforme referência [1]). Elaboração dos autores.

A diferença pode parecer espantosa, mas espanto ainda maior poderia aparecer quando se calcula a letalidade que os números oficiais poderiam sugerir, caso fossem realmente o todo.

Para calcular a letalidade até 26 de abril 2020, precisamos considerar a quantidade mortes oficialmente notificadas até esta data, que equivalia a 4.205, e dividir pela quantidade de casos oficialmente notificados até dez dias antes, que equivalia a 30.425.

Isso implicaria em uma assustadora letalidade de 13,8% por parte do novo coronavírus, algo muitas vezes maior que a letalidade esperada para o Brasil [1].

Há de haver muito mais casos, portanto.

Seguimos no escuro

É interessante notar como o dado reúne uma maneira específica de ver e de falar sobre a pandemia.

A inclinação de uma curva parece funcionar como condição de possibilidade para avaliar a resposta dos governos.

Infelizmente, essa curva vem sendo construída com números atrasados e subestimados, o que provavelmente abre caminho para aqueles que preferem negar o real da crise.

Ajudaria muito se a divulgação desses números nos grandes veículos passasse a vir acompanhada de qualificadores impedindo que eles se transfigurassem no todo.

Mas, por enquanto, continuamos no escuro.

REFERÊNCIA
[1] Os cálculos aqui apresentados seguem a metodologia apresentada neste estudo: https://ciis.fmrp.usp.br/covid19/analise-subnotificacao/

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Otávio Ventura é mestre e doutorando em ciência política pela UnB.

Bruno Moretti é economista pela UFF, mestre em economia pela UFRJ, doutor e pós-doutor em sociologia pela UnB.