Sexta-feira, 5 de dezembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1367

Adoecidos, precarizados e à deriva

Obra de Moffat Takadiwa na Bienal. (Foto: Maria Esperidião)

A pejotização, freelancerização e precarização do jornalismo brasileiro já foram normalizadas por empresas e pela própria categoria. Nas rodas de conversa, repórteres e editores contam que se submetem a salários baixíssimos e a longas jornadas diante da drenagem de empregos e do desamparo oferecidos pelo mercado de trabalho. Se antes era a juniorização de redações que assustava, agora nem mesmo os mais jovens escapam da sombra da descartabilidade: robôs de IA traduzem, pautam, entrevistam e escrevem matérias em segundos. É um cenário alimentado pelo temor de ser expulso do jogo antes que a partida termine.

Para aqueles que ainda sobrevivem na espinha dorsal da CLT, às vezes é preciso abrir mão de várias conquistas, como o direito à desconexão: quanto maior a presença em grupos intermináveis no WhatsApp, Discord ou Slack, maiores são as chances de o funcionário ser bem avaliado pelos chefes. Aptidões não são mais aditivos; o recado é que qualquer um pode executar qualquer tarefa. A experiência também não é necessariamente um ativo; em vez disso, atrapalha. Ao contrário de advogados e médicos, que são mais valorizados à medida que envelhecem, colegas acima de 50 anos evocam rigidez e inflexibilidade.

Há um ano, me pergunto se esse quadro desolador se reproduz no posto historicamente mais glamourizado e cobiçado da profissão: o de correspondente, seja ele contratado ou freelancer.

Não é novidade que o perfil dos correspondentes brasileiros vem mudando nas últimas décadas, como apontaram Sara Rocha (2013), Luciane Agnez (2017) e Ana Carolina Cavalcanti (2022) em seus estudos exploratórios. A tendência de fragilidade laboral vem piorando: a maioria vai se aventurar lá fora por conta própria e/ou decidiu fazer, sozinho, cursos ou pós-graduações para, depois, oferecer seus serviços a veículos brasileiros e estrangeiros. A diferença é que, no cenário pós-Covid, paga-se até 50% a menos por cada trabalho. Para fechar as contas, o colaborador-correspondente, aquele que não tem um “grande nome”, é obrigado a trabalhar mais horas e para mais “clientes”, e também precisa encarar funções que nada têm a ver com o investimento que fez na formação de correspondente internacional, como passear com cachorros, executar serviços domésticos e vender bugigangas.

Mas como os repórteres expatriados percebem a própria precarização e a dos colegas? E como isso impacta ou se manifesta no texto jornalístico?

São essas as provocações da pesquisa em andamento no Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT) da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), que adotou como método a realização de dois instrumentos de pesquisa: 1) um censo da categoria repórter correspondente; 2) entrevistas em profundidade com 15 profissionais que concordaram em compartilhar suas visões.

São duas perguntas muito ambiciosas – e aqui me concentro apenas nos desafios para responder à primeira.

Primeiro, em geral, as organizações midiáticas ainda têm regras pouco transparentes quanto à participação da redação em eventos e pesquisas. Paira um clima de desconfiança diante de um escrutínio acadêmico. Mesmo com a garantia do anonimato das respostas, manter-se discreto é uma estratégia de sobrevivência para continuar na pista. A esse comportamento identitário somam-se ainda dois aspectos. A perspectiva romantizada-heróica dominou e contaminou a profissão por muito tempo; o jornalismo ainda é tratado discursivamente como “missão”, alijado da luta de classe trabalhadora. Há ainda uma resistência a deslocar-se para um lugar que não seja o da “escuta” do outro. Roseli Figaro (2011), que há 20 anos lidera o CPCT, lembra que “os profissionais da área têm uma cultura de que são eles os observadores da sociedade, são eles a colher os relatos”.

Segundo, nas pesquisas empíricas bem fundamentadas, é preciso obter um número de respostas representativo para inferir diagnósticos mais relevantes. Mais de 100 profissionais que estão efetivamente freelando ou são contratados por veículos brasileiros já foram identificados em uma planilha-censo, incluindo colunistas, produtores, editores e repórteres de áudio, texto e vídeo. Mas, até o momento, o questionário online ainda não atingiu a meta de respostas: pelo menos 50%.

As respostas anonimizadas e as entrevistas qualitativas, quando combinadas, já revelaram os três principais indicadores de precarização presentes na cobertura internacional: a remuneração incompatível com a cidade onde mora; a instabilidade de renda; e a naturalização da multifuncionalidade.

A maior parte se autodeclarou precarizada ou parcialmente precarizada. Outro achado importante é que mais de 90% concordaram que as condições de trabalho podem impactar, direta ou indiretamente, a qualidade do texto jornalístico.

Também foi possível identificar diferenças expressivas entre o correspondente com vínculo empregatício e o mais fragilizado, o freelancer pago por cada tarefa realizada, com jornadas muitas vezes superiores a 12 horas por dia.

Os relatos a seguir ilustram sinais de frustração, corrosão dos direitos, burlas à regulação trabalhista e adoecimento mental.

“Hoje, espera-se que o correspondente fique disponível para fazer podcasts, entrar ao vivo no Instagram para falar sobre suas reportagens, gravar imagens, tirar fotos, editar, fazer reservas e comprar passagens. Eu sou contratado e não passo por isso. Mas quando você é freela, além da logística de se deslocar de um lado para o outro, a pessoa passa o tempo inteiro pensando na próxima pauta que vai oferecer ao time do Brasil. É um cérebro que não descansa.”

“Durante as entrevistas coletivas, eu nunca tive a chance de fazer perguntas, porque também atuava como cinegrafista e, nessa função, não podemos levantar a mão lá atrás para fazer perguntas, senão eu poderia perder uma imagem importante.”

“Era difícil fazer qualquer planejamento familiar; eu poderia entrar ao vivo nas próximas três horas. Ou não. A sensação era de que você não podia dizer não a uma empresa que te contratasse temporariamente, porque isso pegaria mal. Depois de 20 anos trabalhando para vários veículos no Brasil, não recebi qualquer benefício; exatamente como um entregador de pizza de aplicativo.”

“Todo mundo que te paga como freela quer exclusividade, mas não paga por isso. Na prática, é um funcionário sem direitos.”

“Eu praticamente tive que dormir trabalhando; entrei em parafuso.”

“Não me sentia com direito a ficar doente. Vi colegas que moravam num buraco de rato, sem condições, em alojamentos muito precários.”

“Você passa a dormir menos horas do que precisa, e isso tem um impacto tremendo. Você tem que virar um robô para conseguir fazer tudo, sem dar espaço para pesquisa e reflexão, que seriam os nossos diferenciais em relação às agências de notícias.”

Correspondente potencialmente uberizável

Freelas com vínculos muito incipientes que exercem atividade laboral em outras áreas, como vendas, serviços e cuidados com crianças, chegaram a descrever a reportagem internacional como mais um bico. Dentro da bula social do neoliberalismo, podem ser pensados como o proletariado-de-si-mesmo, uma mão de obra sempre disponível, com liberdade ilusória e disposta a flexibilizar contratos ou sequer exigir garantia de pagamento.

Defendo, então, que os traços laborais dessas freelas podem, em alguma medida, ser caracterizados como um trabalho potencialmente uberizado (como fenômeno e conceito). Os jornalistas assumem todos os riscos (inclusive ao cobrir conflitos e protestos), os custos de produção (como o home office e o trabalho em um país diferente) e ficam desprovidos de proteções sociais. Ainda que não passem por um gerenciamento algorítmico nas plataformas e não sejam controlados em tempo real por geolocalizadores, esses trabalhadores também estão sendo desconstruídos; são meros “colaboradores” e “empreendedores”; praticam, nas palavras de Ludmila Abílio (2019), um “autogerenciamento subordinado”.

Reconheço que é preciso complexificar a comparação entre o cenário de desalento dos correspondentes “parceiros” e o contexto laboral dos entregadores e motoristas de aplicativos, que são submetidos a jornadas muito mais extenuantes e à exploração medieval de sua força de trabalho, com remunerações irrisórias. Também não tenho conhecimento de existirem aplicativos que ofereçam serviços prestados por correspondentes, a exemplo de GetNinjas, Workana e Profes, plataformas que se vendem como intermediadoras de serviços prestados por autônomos, incluindo professores.

Mas esses grupos de trabalhadores tão diferentes (classe, formação e renda) estão enredados no capitalismo de plataforma.

Dois livros do sociólogo Ricardo Antunes (2018, 2023) não mencionam especificamente como a pragmática neoliberal trouxe consequências para o mundo laborativo dos correspondentes, mas servem para iluminar os perigos da renda esporádica, do mito do “trabalho parcial”, da modalidade remota que sepultou as fronteiras entre descanso e trabalho. De “Icebergs à Deriva”, organizado por ele, veio a inspiração para o título deste texto.

Guy Standing também oferece uma interpretação crítica sobre os trabalhadores que transitam por diversas atividades simultâneas “sem âncoras de estabilidade”. O economista britânico sugere que “os multitarefas são excelentes candidatos ao precariado”, termo que atribuiu à combinação entre precário e proletariado, “a nova classe perigosa”. Os freelancers transfronteiriços também vivem com gotas de “acenos temporários” em um mundo “sem reciprocidade moral”.

A questão, ainda mais desafiadora, é entender o impacto de tudo isso no conteúdo que esses profissionais entregam à sociedade.

REFERÊNCIAS

ABÍLIO, L. C. Uberização: do empreendedorismo ao autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, p. 41-51, 2019.

AGNEZ, L.F. Correspondente Internacional: uma carreira em transição. Santa Catarina: Ed Appris, 2017. 

ANTUNES, Ricardo (org.). Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais. São Paulo: Boitempo, 2023. 552

________________. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

CAVALCANTI, Ana Carolina Vanderlei. Tecnologias da mobilidade e modos de produção da notícia internacional na TV: estudo de caso da GloboNews. 2022. Tese (Doutorado em Comunicação) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2022.

FIGARO, Roseli. A abordagem ergológica e o mundo do trabalho dos comunicadores. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, p. 277-297, 2011. 

ROCHA, Sara de Melo. Brazilian Correspondents in Europe: Careers, Routines,

Networks, News Coverage and Role Conceptions. [Dissertação de Mestrado] Graduate School of Communication, Universitait van Amsterdam, Amsterdam, 2013.

STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

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Maria Esperidião é Jornalista, professora e pós-doutoranda.