Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Quando ouço falar em revólver tenho vontade de puxar a cultura

Foto: Divulgação/Tio Tommy – O Homem que Fundou a Newsweek

Falar em cultura neste Brasil é quase um ato revolucionário. Então convido a assistir aos documentários do Festival É Tudo Verdade que começou dia 8 e vai até 18 de abril. Na semana que também celebrou o Dia do Jornalista — outro atentado às normas bolsonaristas — faz bem assistir a Tio Tommy — O Homem que Fundou Newsweek, direção de Loli Menezes e descobrir onde está sepultado Thomas J. C. Martyn, que nasceu na inglesa e celta Cornualha, emigrou para Nova York e de lá para Argentina, Peru, Rio, São Paulo. O criador da revista que nasceu para competir com Time está sepultado na Agrolândia, Santa Catarina, e seu túmulo leva a única inscrição “fundador da Newsweek” na cidade onde passou os últimos anos até 1979. O misterioso “tio Tommy”, como era conhecido na Agrolândia, não falava de seu passado. Nas entrevistas com pesquisadores, jornalistas e três de seus netos americanos do segundo casamento descobrimos porque Martyn foi se esconder no mato depois da Segunda Guerra.

Descobrimos também por que este ex-piloto da Royal Air Force na Primeira Guerra ocultava detalhes de sua vida na América do Sul, a perna que perdeu na queda de um avião que pilotava em 1916, sua data de nascimento (1894?1896), e alterava o seu nome e o de sua mãe. Martyn foi o primeiro correspondente internacional da revista Time, passou anos publicando belas reportagens no The New York Times e quando o jornal se recusou a fazer uma revista semanal encartada, resolveu fundar a sua, News-Week, intitulada assim mesmo em 1933, com sede no Rockefeller Center. Com muito espaço e prestígio nos primeiros anos, a pós Grande Depressão não perdoou, e a revista começou a dar prejuízo. Para conseguir captar recursos Martyn, já com 45 anos, foi literalmente chutado, convidado pelos acionistas a se afastar.

A Segunda Guerra já corria solta quando ele decide curar a mágoa emigrando para a América do Sul numa empreitada nunca entendida nem pela sua mulher que permaneceu em Connecticut com os filhos. Circulava pelo Peru e desde 1948 já vivia na Argentina, que concentrava um bom número de ex-nazistas . Muitas viagens aos Estados Unidos no pós-guerra com a Guerra Fria instalada, sempre com um inexplicável passaporte diplomático e a estranha função de vendedor de maquinário para calcular apostas de corridas de cavalo numa empresa de fachada.

Mensagens cifradas, envolvimento com a rede Mockingbird da CIA, muitas cartas indo e vindo dos Estados Unidos, ligações com DOPS, a visita de Eisenhower à América Latina e Brasil, o mistério de Thomas J. C. Martyn se resolve neste documentário realizado entre vários países — na Agrolândia entre parentes de sua terceira mulher, a alemã Irmgard, que ele chamava de Mary. O ex-aviador da RAF, ex-jornalista da Time, The New York Times e fundador da Newsweek quando virou tio Tommy era um espião para os Estados Unidos de atividades comunistas na América Latina. Viveu nababescamente recebendo um dinheiro que ninguém entendeu de onde vinha, e toda a verdade sobre suas apurações foi queimada nas fogueiras da ignorância pelos parentes da mulher na Agrolândia, que não podiam ler inglês.

Convido ao segundo documentário para desafiar o país dos bolsolnaros que taxa livros a 12% podendo chegar a 20%, impede projetos de incentivo à Cultura numa paralisia de R$ 500 milhões, mina a educação e órgãos como Funarte, Cinemateca, Casa de Rui Barbosa, Ancine.

Zimba, de Joel Pizzini, é uma maravilhosa viagem àquele mundo normal dos anos 40, 50, o casamento do ator e dramaturgo Zbigniew Ziembinski com Nelson Rodrigues no marco teatral que foi Vestido de Noiva em 1943. Junto com o cenógrafo Tomás Santa Rosa, Zimba introduziu mais de 240 variações de luz depois de intensos ensaios com o grupo amador, Comediantes. Foi um mestre do teatro de vanguarda e do expressionismo. Fernanda Montenegro, Walmor Chagas, Paulo José, Domingos Oliveira, Tônia Carrero, Cecil Thiré, Camila Amado, Nathália Timberg, Antunes Filho se curvam para este imigrante que já chegou formado para ensinar as técnicas de palco, iluminação e cenografia. Ziembinski, diretor e ator no papel de juiz da Corte Internacional que preside uma audiência sobre os ditadores, ousou zombar de Hitler em 1939 no teatro Polski com a estreia mundial de Geneva de Bernard Shaw. O ator que fazia Hitler foi preso. Não havia mais espaço para Zimba na Europa. Resolveu embarcar para o Brasil sozinho na leva de europeus que aos poucos foi chegando principalmente no pós-guerra quando o Brasil refletia um Eldorado.

No palco ele diz “a aventura humana faz sentido”. O documentário cola trechos de entrevistas de Ziembinski e depoimentos de Nelson Rodrigues e atores, trechos de peças. Zimba é um passeio por obras como Limite de Mário Peixoto, Orpheus de Cocteau, Pelléas et Mélisande de Maeterlinck, Woyzeck de Georg Büchner, Fim de Jornada de Robert Sheriff. E às várias peças de Nelson Rodrigues que ele encenou, como Anjo Negro. Domingos Oliveira diz que houve a fusão de duas visões, a demoníaca de Nelson com a angelical de Zimba. “Eu sei que tenho um mau gosto agressivo mas não abdico da palavra viva, úmida, suada, captada na hora”, diz Nelson, e de Zimba, “ele tem o teatro dentro de si”. Ziembinski diz “Nelson tem a violência de temperamento dramático”, e uma certa conotação poética da qual ele, Zimba, tinha a chave.

O documentário traz de volta Cacilda Becker, Norma Bengell, Nicette Bruno, Paulo Goulart, Cleyde Yáconis, a essência dos personagens, a angulação artística, as pausas. “Ele fez o Brasil andar para a frente”, diz Paulo José. Zimba fez Tico-Tico no Fubá com Anselmo Duarte e Tônia Carrero no cinema, trabalhou no Teatro Brasileiro de Comédia de Franco Zampari com Antunes Filho como assistente de direção, na Cia Vera Cruz que ele viu sugar o TBC, matando os dois. “Vera Cruz era a irmã gastadeira do TBC, acabou com os dois”. Paulo Autran dá o depoimento, “sem o TBC não seria possível o Teatro de Arena, o Oficina..”. Zimba foi para a televisão com a sensação de atuar para “uma plateia espacial”. Criou elencos permanentes.

Em preto e branco e cor, Ziembinski relata momentos de vida como dentro daquele destroyer durante a guerra, a quilômetros da costa, quando viu o famoso violinista Szeryng desamparado no meio da chuva e não titubeou: pegou o violino do músico para guardar debaixo do seu cobertor. “Que ideia [a minha]”, diz Zimba, “a gente ainda quer resguardar o violino quando o mundo vem abaixo”.

Parafraseando Göring ao contrário, minha proposta é preservarmos o violino nesta tempestade de fogo cruzado e agir como sugeriu numa entrevista esta semana o poeta e escritor Marco Lucchesi, “nossa redenção virá quando tirarmos o melhor de nós, se há cultura, não há espaço para ódio”.

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Norma Couri é jornalista.