Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pandemia, práticas jornalísticas e o espelho das desigualdades

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Há quase um ano experimentamos um contexto difícil de isolamento e desigualdade no acesso a direitos básicos em decorrência da chegada da pandemia de Covid-19 ao Brasil. Este período escancarou aos nossos olhos vulnerabilidades que dizem muito da posição que ocupamos (individual e coletivamente) na sociedade, no cenário global e até mesmo no interior de nossas casas. No entanto, será que, quando nos referimos a desigualdades de raça e de gênero, percebemos uma abordagem cuidadosa, preocupada ou até mesmo responsável por parte dos veículos jornalísticos?

A discussão que quero levantar hoje está subsidiada sobretudo por reflexões, observações e dados obtidos durante o primeiro ano de atividades do Pauta Gênero — Observatório de Comunicação e Desigualdade de Gênero da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), nascido justamente no início de 2020. Como dispositivo de crítica de mídia, o observatório ficou atento àquilo que foi dito e silenciado em meios de comunicação jornalísticos nacionais, como parte da equipe do Monitoramento Global das Representações de Gênero (GMMP) no Brasil, e adaptou a metodologia do projeto internacional para analisar o cenário cuiabano em meios digitais.

Se em Mato Grosso, estado conhecido por seu conservadorismo e altos índices de violência contra a mulher, o monitoramento de sites jornalísticos não traz resultados animadores, vemos também poucas diferenças em relação aos sites considerados hegemônicos no país. Ainda que tenhamos aumentado o índice de feminicídios em 58% no ano passado, a despeito do aumento de subnotificações durante a pandemia, a imagem objetificada e hipersexualizada da mulher é algo constante nas homepages mato-grossenses. As mulheres aparecem menos na posição de fontes especializadas, não têm suas palavras destacadas entre aspas tanto quanto homens e, muitas vezes, ainda têm sua identificação vinculada a alguma figura familiar (a fonte é trazida como mãe, filha, neta de alguém) ou a uma condição de vítima ou sobrevivente durante a pandemia.

Ao refletirmos sobre a intersecção entre raça e gênero, raramente uma mulher negra é convocada pelo jornalismo a falar como fonte especializada, inclusive na posição de trabalhadora. Ainda que as mulheres sejam grande parte das pessoas afetadas pela pandemia (chefes de família, maioria absoluta de profissionais da saúde, sobretudo enfermeiras e técnicas de enfermagem, responsáveis pelo cuidado), que deveriam ser ouvidas, trazidas com protagonismo por estarem na linha de frente (no comércio, nos hospitais e nos diversos trabalhos que envolvem o cuidado dentro das residências brasileiras), o silenciamento das brasileiras racializadas prevalece nas imagens e histórias veiculadas. Destaco também que a cobertura de 1º de maio de 2020, “Dia do Trabalhador” (frequentemente não lembrado como “Dia da Trabalhadora”), considerada de rotina/planejável, evidencia, tanto em sites hegemônicos de abrangência nacional quanto em sites cuiabanos, a ausência de representatividade. Quando aparecem, estão ligadas à violência, escândalos políticos ou ao cuidado (naturalizado como feminino e não denominado de trabalho), reforçando um ethos jornalístico patriarcal e racista, além de valores-notícia genderizados.
As trabalhadoras, no jornalismo, cedem lugar às vítimas, a ciência ainda é caracterizada como masculina, ligada a valores convencionados como masculinos e embranquecidos. A exceção se dá quando vemos mulheres negras contaminadas por Covid-19. As fotografias que privilegiam rostos de trabalhadoras da saúde podem ser lidos como brancos, o que nos chama atenção também para uma questão interseccional da representação da mulher trabalhadora. É fortalecido o estereótipo da pessoa branca trabalhadora em diversas imagens, reforçando que mulheres negras e indígenas não são trabalhadoras ou não tanto quanto as brancas. O rosto marcado de máscara e equipamento de proteção individual era branco. Por outro lado, as mulheres foram direta ou indiretamente implicadas no sofrimento da perda, na exposição explícita de afetos familiares, do vínculo emocional, algo trazido implicitamente como feminino ao longo das coberturas e das construções sociais.

Foi possível perceber que, quanto maior a vulnerabilidade, menor a representação midiática e jornalística, aliada ainda à naturalização de opressões, de desigualdades sociais e de um discurso meritocrático: tudo estaria nas mãos da população e da superação individual, mascarando o problema coletivo de invisibilidade das mulheres, sobretudo aquelas não brancas, como agentes, trabalhadoras, parte de uma sociedade que se move e precisa mudar em diversos aspectos para superar essa situação de pandemia.

Por outro lado, destaco a busca por conteúdos produzidos no âmbito do Observatório, focados em conscientização sobre desigualdades de gênero e no impacto dos processos políticos e eleitorais sobre elas. As rádios comunitárias no território mato-grossense ajudaram a pautar esses temas e a visibilizar esses problemas. Apesar de o protagonismo jornalístico ainda ter raça e gênero, nem todo o cenário é desanimador.

Você pode acompanhar os dados e novidades sobre o Observatório Pauta Gênero pelo Instagram ou blog do projeto.

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Tamires Ferreira Coêlho é professora adjunta do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMT, jornalista e coordenadora do Pauta Gênero.

Esse texto faz parte das atividades do GT de “Mídia, Gênero e Raça” da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (COMPOLÍTICA).